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Aramis

O bom debate para melhor entender "O Nome da Rosa"

Um check-up visceral. Assim foi o debate em torno de "O Nome da Rosa" que reuniu na fria noite de quarta-feira, 17, um grupo de professores e especialistas que, por 200 minutos, examinaram a fundo o filme que o francês Jean Jacques Annaud realizou a partir do romance do italiano Umberto Eco. O resultado não poderia ser mais positivo, com diferentes interpretações, mas em veredas esclarecedoras - e que fazem das fitas gravadas durante a mesa redonda precioso manancial de informações. O debate sobre "O Nome da Rosa" foi o primeiro de uma série de encontros que Maria Cristina Vieira vai promover na Artespaço/ Saint Germain De Prés (Rua Ignácio Lustosa, 203), que, muito mais do que apenas uma galeria/ antiquário, começa a se firmar como um local da intelegentza curitibana. xxx Ao idealizar debates em torno de filmes, peças e livros (possivelmente, o próximo encontro será para analisar "As Brumas de Avalon", de Marion Zimmer Bradley), Maria Cristina Vieira retoma algo que foi interrompido há duas décadas: encontros informais, fora do âmbito oficial, em que pessoas de diferentes tendências se encontram para uma salutar troca de informações e idéias. Assim, acontecia há poucas quadras da Saint Germain du Prés, no simpático apartamento - estúdio da professora Philomena Gebram (hoje diretora-executiva do Conselho Nacional de Pesquisas, em Brasília), na Rua Emiliano Perneta. Ali, entre valiosos quadros e uma imensa biblioteca, uma geração de jovens entusiastas teve oportunidade de ampliar seus conhecimentos, fazendo leituras de peças, discutindo filmes e textos polêmicos na época - por sinal numa resistência intelectual à repressão que entrava em escalada naqueles dias sombrios pós-abril de 1964. xxx Sem, em absoluto, pretender esgotar as possibilidades de diferentes leituras em torno de "O Nome da Rosa", a mesa-redonda organizada por Maria Cristina representou, em termos locais, a primeira tentativa de se ter um troca de idéias de forma objetiva e organizada, sem a balbúrdia e o radicalismo que, tantas vezes, condena ao fracasso esse tipo de encontro. Assim, se o cineclubismo que acontece hoje tem uma abertura muio mais para manifestações políticas (inclusive de ligações internacionais) e as onerosas e paquidérmicas instituições oficiais - Secretarias de Estado e Municipal de Cultura - raramente sabem realizar bons debates, produtivos e práticos, é salutar que caiba a uma agente cultural privada, preencher este espaço, sabendo selecionar temas e participantes para os seus debates. xxx Seis professores universitários, um psicólogo, um cineasta, entre outros, integraram-se na análise de "O Nome da Rosa" (em exibição nos cines Palace Itália/ Itália), sabendo ver os diferentes apectos deste [filme, já visto por] mais de 20 mil espectadores em Curitiba. De princípio - e bem claramente - houve um ponto comum: é estupidez e perda de tempo estabelecer parâmetros de julgamento do filme de Annaud, se a comparação for feita com base no romance. Domenico Costella, italiano de Parma, 46 anos, desde 1974 no Brasil, padre da ordem Xaveriana e professor de filosofia contemporânea da Universidade Católica, lembrou que estava em Roma, no final do ano passado, quando, logo após a estréia do filme, o próprio Umberto Eco Salu, 54 anos, em defesa do cineasta Jean Jacques Annaud, em relação a interpretações de que o filme não havia sido fiel ao romance, Eco disse: - "Meu livro é meu livro, teu filme é teu filme. O filme não é uma adaptação exata do livro, porque na leitura cada um faz a sua própria imagem mental". Quem assistir ao filme com atenção, observará que na apresentação dos créditos aparece uma palavra pouquíssimo conhecida - Palimpsesto, que, como ensina o mestre Aurelio Buarque de Holanda, é "manuscrito sob cujo texto se descobre (...) a escrita ou escritos anteriores", ou seja, oficial e declaradamente, Annaud trabalhou sobre um texto, mas de forma livre e fazendo a sua própria interpretação - e estabelecendo a linguagem que o cinema exigia pra transformar um calhamaço de 562 páginas (como na tradução de Aurora Forloni Bernardini/ Homero Freitas de Andrade, já em 18ª edição pela Nova Fronteira) num roteiro enxuto de 160 páginas, linguagem extremamente cinematográfica e comunicativa - ao contrário do próprio romance, que por suas inúmeras citações em latim e longos diálogos em torno da filosofia, fez com que milhares dos 170 mil brasileiros que até agora adquiriram o volume não passassem das primeiras 50 páginas. O filme, porém, tem uma leitura agradável e esteticamente segura, como observou outro dos participantes da mesa redonda, o professor Roberto Figureli, ex-titular da cadeira de cinema e hoje mestre da estética na Universidade Federal do Paraná. Figurelli, 50 anos, intelectual com profunda identificação ao cinema, explanou, de forma cristalina, a visão perfeita com que o diretor Annaud soube realizar o seu filme - independente da grandeza intelectual da obra de Eco. xxx Professora de literatura brasileira e semiótica na Universidade Federal do paraná, Denise Azevedo Duarte Guimarães trouxe esclarecedoras informações ao debate, especialmente na relação entre os personagens Jorge de Burgos - guardião da rara obra (a "Comedia", de Aristoteles, ponto-chave de toda a trama) e o escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986), declaradamente uma das influências de Umberto Eco. Denise mostrando grande familiaridade tanto na obra semiótica de Eco como na extensa literatura borgeneana apontou inúmeros pontos comuns, acabando por revelar uma descoberta em suas pesquisas, que merece ser registrada: em 1941, no conto "O Jardim dos Caminhos que Se Bifurca" (incluído em "Ficciones"), Borges diz ter extraído este texto de uma idéia original do livro "Statments", de Herber Quaim (especificamente a parte intitulada "The Rose Yesterday"). E explicou: - "Este conto é todo criado a partir de labirintos, livros, espelhos e outras referências que estão claro no livro de Eco, e, naturalmente, também no filme". Evidentemente, aproximações literárias, simbólicas e filosóficas podem ser estabelecidas quando se examina uma obra da grandeza intelectual de "O Nome da Rosa" (o livro) e sua transposição para outro veículo (o filme), mas, justamente pela possibilidade de permitir a busca de novas - e interessantes - informações é que torna oportuno e gratificante um debate como o que aconteceu na quarta-feira. Um debate tão oportuno que o padre Domenico Costella, sacerdote lúdico, identificado ao social e a teologia da libertação, pensa em promover novos encontros em torno deste tema, já no âmbito estudantil, "uma vez que estou impressionado com o interesse do público jovem pelo filme". Regina Rottemberg Gouveia, professora de história, fez uma verdadeira dissertação em torno da época em que a ação de "O Nome da Rosa" se passa, analisando a Inquisição, o papel da Igreja, a sociedade feudal e todas as condicionantes que emolduram a ação. Já a sua colega de departamento, Maria Ignez de Boni, trouxe colocações em relação ao papel da mulher nesta sociedade, enriquecendo a esplêndida interpretação que Maria Cecília Solheide da Costa, professora de antropologia da UFP, tão bem fez. Vendo o lado social da questão e, especialmente, o fato de apenas uma mulher (interpretada pela sensual Valentina Vargas), sem nome e sem falar uma palavra, entrar em toda ação, a professora Maria Cecília, em suas intervenções possibilitou que o debate crescesse para outra - e rica vertente - a sexualidade e a questão feminina, no que o psicólogo Moacir Gouveia deu interpretações que foram a fundo, questionadas pela cineasta Berenice Mendes - uma das mais atentas participantes. Desde as intervenções da inteligente estudante Beatriz Helena Moraes, 18 anos, as colocações psicológicas, de profundidade, que Gouveia soube fazer - em contraposição à imensa (e questionável) doutrinação em seus aspectos religiosos filosóficos, trazidos pela erudição do padre Costella, o debate em torno de "O Nome da Rosa" provou que esta obra de Eco - agora ampliada em seu público com o filme - está entre aqueles momentos maiores em que a polêmica e a reflexão instiga a inteligência. LEGENDA FOTO - Sean Connery e o diretor Jean Jacques Annaud num intervalo das filmagens de "O Nome da Rosa".
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
2
21/06/1987

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