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Aramis

O Brasil vivo de Aloisio Magalhães

"O cinema documentário é o verdadeiro cinema" (Aloísio Magalhães) Dois dos mais importantes filmes do FestRio acabaram desapercebidos no porre audiovisual que caracteriza uma mostra desta dimensão: "Memória Viva", de Octavio Bezerra e "Brascuba", de Orlando Senna e Santiago Alvarez. O primeiro, no último dia da competição, acabaria esquecido se não tivesse merecido ao menos um prêmio especial do júri - dividido com as produções vindas da China Comunista ("A Última Imperatriz") e União Soviética ("Kin-dza-dza"). "Brascuba", produzido por Ney Sroulevich - director-geral do FestRio - foi exibido hors concours, numa das sessões da meia-noite, para um pequeno público. Foram, entretanto, dois momentos da maior brasilidade, de reflexões sobre questões culturais e sobre o próprio País. Em "Brascuba" - primeira co-produção entre o Brasil e Cuba (cujas aproximações culturais são cada vez maiores) se fez uma experiência interessantíssima: o cubano Santiago Alvarez filmou no Brasil e o brasileiro Orlando Senna foi filmar na Ilha de Fidel. Cada um procurou, assim, mostrar as ligações culturais entre brasileiros e cubanos, apesar das diferenças geográficas e políticas entre a ilha do Caribe e o "continente" sul-americano. Evitando, inteligentemente, o confronto simplesmente ideológico - ou seja, mostrar soluções encontradas no regime socialista para problemas que persistem no Brasil, este documentário busca na simplicidade de suas imagens as aproximações de uma herança africana, de uma identidade antro-sociológica as razões que podem aproximar os povos. Com a medida certa, tanto Senna - realizador experiente, com vários filmes marcantes, e o cubano Santiago Alvarez (também um dos mais respeitados cineastas daquele País) conseguiram um resultado excelente, uma contribuição notável para mostrar que, 22 anos depois do rompimento das relações diplomáticas entre o Brasil e Cuba, a identidade cultural e social entre os dois países somente se tornou sólida. Entrevistas curtas, aspectos da música e folclore dos dois países - e um filme majestoso, rodado durante o Carnaval de 1986 faz com que "Brascuba" - (não confundir, por favor, com o longa-metragem vanguardista que Júlio Bressane realizou sobre o romance "Brás Cuba", de Machado de Assis) - seja um exemplo de filme-entendimento, que levado agora ao 9º Festival do Novo Cinema da América Latina, em Havana, deverá cumprir um roteiro internacional. Se de "Brascuba" já havia informações prévias, quando do início de sua produção, "Memória Viva" foi a mais agradável surpresa do FestRio. Concluídas as primeiras cópias na primeira semana de novembro (a primeira sessão pública aconteceu no dia 9 de novembro), este longa-metragem é uma obra adulta, emocionante e com a maior atualidade para o nosso País. Na sessão da abertura do FestRio, a projeção do média-metragem "Maioria Absoluta", que Leon Hirzman (1938-1987) realizou exatamente em 1964, mostrou problemas sociais-econômicos-políticos que continuam hoje, mais vivos do que nunca (e bastaria atualizar os dados para se ter um filme up to date). Octavio Bezerra em seu "Memória Viva" faz uma radiografia do Brasil em problemas culturais que seria desejáveis tornasse esta obra obsoleta dentro de algum tempo. Infelizmente, assim como a visão social de Hirzman, há 23 anos em seu "Maioria Absoluta" - no qual partindo dos analfabetos (razão do título de seu documentário) apenas agravou-se nestas duas décadas, teme-se que as questões discutidas por Bezerra em "Memória Viva" permaneçam por muito tempo. Partindo de um projeto de curta-metragem, biográfico sobre a figura notável do designer, pintor, advogado e batalhador cultural Aloísio Magalhães (Recife, 5/11/1927 - Pádua, Itália - 13/6/l982), Octavio Bezerra acabou desenvolvendo um longa-metragem que traz tanta emoção e brasilidade quanto conseguiu, há 9 anos passados, Tânia Quaresma em seu "Nordeste: Cordel, Repente, Canção". Filho de família pernambucana, carioca (25 de dezembro de 1946), Octavio Bezerra estudou (e trabalhou em Economia e Arquitetura, foi ator (em 1967) em "O Justiceiro", de Nelson Pereira dos Santos, mas a partir do final dos anos 70 se decidiu pelo cinema, como documentarista, realizando "A Lenda de Quintipuru" (1978), "América" (1979), "Beco Sem Número" (84) "A Resistência da Lua" (1985, sobre a destruição de um bairro em Salvador). Iniciou um longa-metragem, em 1982, "Os Anos 80" e, no ano passado concluiu o documentário "Lampeão, Capitão Marajás". Admite que pouquíssimas pessoas viram estes filmes - todos voltado a uma ótica de defesa de valores culturais. Assim, admirando a luta desenvolvida por Aloísio Magalhães, como secretário de assuntos culturais do Ministério da Educação e Cultura, idealizador e fundador do Pró-Memória, Octavio animou-se, ao ganhar cinco latas de filmes virgens, num concurso promovido pela Embrafilmes [Embrafilme], a se lançar num projeto afetuoso. Sem ter conhecido Aloísio (que morreu na Itália, quaudo participava em Veneza de um encontro cultural), Octavio encontrou sua viúva, a pintora Solange Magalhães, 47 anos, a grande colaboradora para o projeto. Foram dois anos de dificuldades, buscando recursos para as filmagens e reconstituindo um roteiro das preocupações de Aloísio. Designer que criou mais de 90 marcas para grandes empresas - estatais e privadas, além de ter redesenhado as cédulas para a Casa da Moeda, Aloísio sempre foi, antes de tudo, um orador. Só há três anos alguns de seus discursos e conferências foram reunidos no volume "E Triunfo?" (Editora Nova Fronteira), do qual Octavio extraiu o texto para o seu filme - acrescentando-lhe mais uma longa entrevista feita por Zuenir Ventura, hoje editor do caderno "B" do "Jornal do Brasil", na época (1981), na revista "Isto É". O admirável em "Memória Viva" é que Bezerra conseguiu ultrapassar a simples biografia e, usando apenas palavras de Aloísio, pintar um painel corajoso, atual e dolorido das contradições culturais do Brasil. Da primeira à última seqüência, "Memória Viva" aborda as questões de nossa identidade cultural, as contradições de um País que paralelamente à absorção de sofisticadíssima tecnologia tem ainda problemas que fazem parecer um País do século XVII - na fome, miséria e doenças em tantas partes do País. Com uma perfeita fotografia de Miguel Rio Branco e trabalhando vigorosamente na montagem com Severino Dada, Octavio Bezerra conseguiu enxugar a imensa quantidade de material filmado - não só em Pernambuco (embora haja uma preocupação de marcar o filme em sua "Pernambucalidade cultural") mas também em outros Estados. Sem medo de errar pode-se dizer que "Memória Viva" é neste final de 1987 um documento visual tão importante quanto foi, há 24 anos atrás, a série de reportagens sobre a destruição do Patrimônio Histórico Nacional que o jornalista Franklin de Oliveira publicou no jornal "O Globo" e, posteriormente reuniu no livro "A Morte da Memória Nacional". Nada em "Memória Viva" é gratuito. Os referenciais sobre a vida de Aloísio Magalhães, sua juventude, sua preocupação social a partir dos protestos de rua em Recife, em 1947, quando a polícia assassinou o líder estudantil Demóclito de Souza Filho (imagens que foram acopladas à seqüência de "Manhã Cinzenta", de Olney São Paulo, no qual registrou a passeata dos 100 mil, no Rio de Janeiro, há 20 anos, quando da morte do estudante Edson Luís, no restaurante Calabouço) até as seqüências redramatizadas - tudo tem um sentido profundamente atual. Com base no depoimento de um dos maiores amigos de Aloísio, Félix de Athayde, jornalista dos mais atuantes, Bezerra recriou uma cena entre o ridículo e o trágico: um grupo de executivos e "grandes" autoridades num almoço, discutem a contratação de uma obra de bilhões de dólares, apresentando seus "argumentos" em favor do faraônico projeto. Sem entrar em referenciais específicos - a crítica vale tanto para o Metropolitano em São Paulo, Itaipu ou Angra dos Reis - pois o fundamental é mostrar o processo de ilusão e euforia irracional que levou ao endividamento sem retorno do Brasil Nesta seqüência, apareceram vários amigos de Aloísio - como Albino Pinheiro, o mais conhecido animador cultural do Rio de Janeiro e presidente da Associação dos Pesquisadores da MPB; Fredy Carneiro, o jornalista Fernando Albaglim, editor de "Cinemin", entre outros. Amigo de Capiba - visto em outra seqüência - Aloísio Magalhães era um boêmio bom de copo, cantor e seresteiro - motivo pelo qual outra das emocionantes seqüências é uma roda de samba, no qual foram reunidos dona Zica (viúva de Cartola), Carlos Cachaça (cantando um irônico samba sobre a dívida externa brasileira), Herivelto Martins e outros nomes da MPB. Usando controladamente as imagens do próprio Aloísio, com apenas o aproveitamento no final de sua própria voz, o texto enxuto, profundo e ajustadíssimo, selecionado de suas conferências, é narrado por Emanoel Cavalcanti, 58 anos, alagoano há anos radicado nos EUA, ator dos mais conhecidos. A trilha sonora é um primor - com aproveitamento desde ritmos folclóricos, temas de Heitor Villa-Lobos e encerrando, de forma emocionante, com João Gilberto - fazendo assim de "Memória Viva" um filme-reencontro com o Brasil tão necessário de ser melhor conhecido, discutido e analisado. A produção cinematográfica brasileira teve muitos momentos de valor em 1987. Entretanto, em nosso entendimento, os dois documentários que melhor traduziram em imagens fortes e profundas este nosso País - em aspectos que necessitam serem conhecidos de todos - foi o longa em 16mm "Terra Para Tânia", de Tetê Moraes - o grande premiado no Festival de Cinema de Brasília, em outubro e, agora "Memória Viva". Que, em 1988, estes dois filmes cheguem aos circuitos de exibição para que o Brasil seja cada vez mais verde-amarelo e não o Brazil com "z" na ilusão das imagens coloridas e publicitárias que a televisão nos impõe a cada dia. LEGENDA FOTO: Imagens vigorosas que mostram as contradições culturais do Brasil em "Memória Viva", longa-metragem de Octávio Bezerra.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
06/12/1987

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