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Aramis

O Gavião das Costas Pretas contra o Guará dos Pampas

Uma oportunidade única, que não pode ser perdida por ninguém que tenha algum interesse pela cultura (em seu sentido amplo e antropológico) brasileira: o recital que Elomar Figueira de Mello fará hoje, às 21 horas, no Paiol. Se a sua participação na "Parceria", segunda-feira, não possibilitou que falasse mais profundamente sobre suas músicas, sua visão do mundo, suas posições perante a vida, os homens e a sociedade, hoje, mais à vontade, acompanhado pelo seu fiel amigo, Shangay (Eugênio Avelino Lopes Sousa, 32 anos), como ele baiano de Vitória da Conquista, Elomar estará mostrando suas cantigas. Há mais de uma semana que estamos lembrando a importância de Elomar, que, há 7 anos atrás, após ouvirmos em seu primeiro lp ("... Das Barrancas do Rio Gavião", Philips, produção de Roberto Santa), já nos entusiasmava ao ponto de o incluirmos entre os 10 melhores discos daquele ano. Foram necessários seis anos até que Elomar se tornasse mais conhecido: no ano passado, após gravar, estimulado por amigos e entusiastas de sua obra única e originalíssima, um álbum duplo ("Na Quadrada das Águas Perdidas", edição inicial de 2 mil exemplares, agora relançado comercialmente por Marcus Pereira), Elomar aceitou sair de sua tranqüilidade no município de Vitória da Conquista, para fazer alguns shows - em São Paulo, Niterói e participar de um dos roteiros do Projeto Pixinguinha. Com toda razão a Associação Paulista de Críticos de Arte o escolheu como personalidade do ano na MPB e, para nós, o álbum "Na Quadrada das Águas Perdidas", encabeçou, ao lado de "Zumbido" de Paulinho da Viola (que segunda e terça-feira apresentou dois maravilhosos shows no Guaíra), a nossa anual relação dos melhores do ano. Assim, conhecer Elomar é, mais uma vez, confirmar aquilo que sempre pensamos, quanto mais talento tem uma pessoa, mais simples e generosa ela o é - foi um raro privilégio. Segunda-feira à noite, na série "Parcerias", Elomar e o jornalista Fausto Wolff levaram quase 300 pessoas ao Paiol. Deu para conhecer um pouco da extraordinária figura humana que é Elomar, 43 anos, arquiteto que após estudar por 13 anos em Salvador, voltou a sua cidade natal. Ali dirigiu até 1974 o Departamento de Urbanismo, mas foi na caatinga, que se encontrou consigo: na "Gameleira", 17 alqueires, a 200 km da cidade de Vitória da Conquista, onde cria carneiros; em São Domingos, 6 alqueires onde há plantação de café e, especialmente, nos 5 alqueires que possui nas margens do Rio Gavião, onde cria bodes e cabras. Muito antes da ecologia virar modismo, (necessário, aliás, na proporção em que se conscientiza a população dos riscos da destruição do meio ambiente), Elomar já havia descoberto que a maior fortuna é viver em paz consigo mesmo e, como disse, na segunda-feira, "é burrice ser rico: se passa gastar energia criativa com preocupações, taxas, impostos, investimentos, etc., que nada servem". E por sua pureza e autenticidade, é que Elomar foi, em nossa opinião, a mais forte e original presença da música brasileira na década que se encerrou. Um príncipe da caatinga, como definiu, em belíssimo texto (aqui transcrito na edição de domingo, 27/04), seu amigo Vinícius de Moraes, ou um cantador medieval, Elomar, com seu rosto rijo, marcado por rugas e sol da caatingas, botas de couro, capote e chapéu preto, é uma imagem de um Brasil que ainda não se corrompeu frente ao consumismo da civilização, mas que já está ameaçado. A televisão, a discotheque "e todos os outros vícios, pragas e defeitos dos "hurbanoides", como ele classifica, os habitantes das cidades, já estão chegando a Caatinga. Foi Elomar, numa conversa com o humorista Henfil, falando sobre seus bodes, que inspirou "Francisco Orellana" - que junto com o "Severino" e "", formam o trio de personagens mais sociais na obra daquele cartunista. Elomar Agraúna aceitou vir a Curitiba por sugestão de seu primo de 2º grau, o fotógrafo Alberto Viana (o "Baiano") e aqui conheceu Fausto Wolf, para com ele dividir uma "parceria inédita". Infelizmente, tanto Elomar teria muito mais a dizer, se estivesse sozinho, como Fausto Wolff (Faustin Lucius Lunemburg Brunswick von Wolffebnbutter), 42 anos, gaúcho de Santo Ângelo, 26 anos de jornalismo 7 livros editados, 11 anos de vivência no Exterior, 2 filhas e pai de mais cinco (uma delas, a dinamarquesa Sandra, inspirou seu lírico e honesto "Sandra na Terra do Antes" , coleção Pasquinzinho, Codecri, 166 páginas). Como profissional consciente da importância da função social de sua profissão - "o jornalismo, quando exercido com dignidade, é a mais nobre das profissões", disse, lamentando, entretanto, que nos últimos 16 anos, a figura do repórter tenha (quase) desaparecido, ou sido substituída, pela do "apanhar de press-releases". Assim, frente a dimensão da obra de cada um - que nunca tinham se visto anteriormente - após quase 3 horas, sentiu-se uma certa frustração. Fausto Wolff, desde 1971 colaborador do "Pasquim", da qual hoje é um dos editores e que vai lançar em breve o "Cacilda", uma "publicação assumidamente pornográfica", falou um pouco de jornalismo, dos problemas profissionais, mas não pode dizer tudo que gostaria. E Elomar cantou algumas de suas belas músicas, procurou fazer colocações de sua vivência, mas também não teve oportunidade de exprimir-se mais amplamente. Meso Shangay, seu fiel amigo ("o apelido é porque Shangay era o nome da sorveteria do meu pai, em Vitoria da Conquista"), chegou a esquecer uma parte de uma canção de muitos versos, "que já cantei 500 vezes e nunca havia esquecido". Mas, se Fausto Wolff já retornou ao Rio, felizmente Elomar permanece até amanhã. Hoje à noite, com seu amigo Shangay, fará seu recital (este é o termo que melhor se aplica a sua apresentação) no Paiol, absolutamente indispensável para se entender melhor a música pura, brasileiríssima - mas de raízes comuns a certas cantigas ibéricas - que produz com uma perfeição única. Elomar faz questão de dizer que não é líder de movimento, nem "show-man" ou artista. Apenas um cantador. Mas, queira ou não, ao seu lado, se agrupam alguns jovens que entenderam a riqueza e extensão de sua musicalidade: os irmãos Dercio e Dorothi Marques (que, por coincidência, estréiam amanhã, no Paiol, para temporada de 4 dias), Diana Pequeno (baiana, esposa de Dércio), Carlos Pita e Shangay, por enquanto. A admiração e repeito que Elomar merece é tanta, que um casal de amigos do Rio de Janeiro, Ernani-Adeline Clementine da Rocha Figueiredo, ele professor e historiador, vieram a Curitiba especialmente para assistir as suas apresentações. Ernani foi quem criou o belíssimo encarte, com textos, letras e ilustrações, do álbum "Na Quadrada das Águas Perdidas" e, por várias vezes, passou temporadas com Elomar, em sua fazenda nas margens do rio Gavião. Foi também quem dirigiu o espetáculo em Niterói e, como nós, acredita que este "Princípe de Caatinga", merece ter um concerto-recital em salas como a Sala Cecília [Meireles], inclusive exibindo seu virtuosismo de violonista (tem peças só para violão, que, por nosso intermédio, chegarão nas mãos de Turíbio Santos, "o maior violonista do mundo, na atualidade", diz Elomar). No ano passado, Eduardo Schnoor realizou um curta-metragem intitulado "Elomar do Rio Gavião", que infelizmente, até hoje não entrou em exibição em circuito comercial. xxx Elomar tem uma obra imensa, inédita, inclusive o "Auto da Caatingueira", da qual, alguns versos, foram gravados em "Na Quadrada da Águas Perdidas". Pretende gravá-la este ano - "o material daria um álbum triplo, mas, por razões práticas, vamos ver se condensamos em dois discos", explica, falando ainda de outros projetos. Sem deixar a pureza de sua região, e evitando os "hurbanóides", o roçariano Elomar sente que sua música pode chegar a um público interessado. Para Adeline Clementine, "Elomar é uma espécie de profeta". Pode ser também que até haja apenas um grupo de pessoas que o entenderam. Mas o fato é que este brasileiro-cantador tem uma força única e especial em suas canções, que hoje a noite poderá ser apreciada no Paiol. Amanhã, numa infeliz "iniciativa" (sic) da Fundação Cultural de Curitiba (aliás, seus diretores, para variar, não apareceram na "Parceria" de segunda-feira, e o prefeito Jaime Lerner, por compreensíveis razões pessoais, não pode permanecer até o final) Elomar vai cantar no improvisado "palco das ruínas" (sic) no Alto do São Francisco. Embora os "defensores" de tal promoção a justifiquem como "oportunidade para o povo ouvir Elomar", esquecem de que a sua música é quase camerística, onde é necessário sentir e entender todas as palavras (muitas, regionais, exigindo quase um glosario para compreensão), e que se não houver um perfeito sistema de som, o espetáculo não será entendido pelo público. Afinal, a música de Elomar não é "forró" e nem tem o balanço do xaxado ou baião. É algo muito diferente, sério e profundo - e por isto, a recomendação fica para aplaudí.o hoje à noite, no Paiol. xxx A parceria de segunda-feira poderia ganhar um título muito apropriado: considerando a origem gaúcha de Fausto Wolff e a fixação de Elomar na sua terra, o clima informal, um pouco até provocativo entre ambos houve "A disputa do Gavião das Costas Pretas contra o Guará dos Pampas".
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
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Tablóide
6
30/04/1980

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