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Aramis

O prazer renovado de reler Drummond

Que delícia reencontrar os livros do poeta maior Carlos Drummond de Andrade em novas e coloridas edições lançadas pela Record! Depois de tantos anos de fidelidade a José Olympio, Drummond acabou se transferindo para a editora de Alfredo Machado que, com toda razão está sabendo dar um tratamento especial aos seus livros - reeditando-os com carinho e fazendo com que "Corpo", com novos poemas, esteja, desde sua primeira edição entre os mais vendidos. Aos 83 anos, consagrado como o mais importante poeta brasileiro, além de admirável cronista - e o espaço que deixou ao, voluntariamente, aposentar-se no ano passado, jamais será preenchido - Drummond é daqueles autores que se lê com imensa satisfação. A felicidade de quem encontra seus textos pela primeira vez - os mais jovens - ou aos seus milhares (seriam milhões) de admiradores, que tanto aprendem com a magia das palavras que ele, melhor do que ninguém, sempre soube usar. Difícil - impossível mesmo - separar o que é bom do ótimo na obra de CDA. O que é melhor? Seus contos, suas crônicas ou sua poesia? Por exemplo, os "Contos de Aprendiz", em 22ª edição, com capa de seu amigo Ziraldo, trazem 15 contos da maior ternura, incluindo aquele que é um exemplo do limite do real com o fantástico: "Flor, telefone, moça". Drummond conta as histórias que acontecem ou podem acontecer, na medida em que o acaso ou outro poder as torna possíveis, com o auxílio da imaginação alerta. Drummond gosta de relatar aquilo que parece o mínimo porém está cheio de significado na memória de cada um, como a surpresa e a decepção do primeiro sorvete, ou uma briga de irmãos que transforma a penitência infantil em pecado. Ou senão, a simples troca de palavras entre um homem e uma mulher, no coletivo, em que o olhar perturbado entra com sua carga de sensualidade. E ainda o devaneio da moça que prepara as figuras do presépio, na véspera de Natal, com o pensamento não no que fazia, mas no namorado e o singelo com a mesma naturalidade e discrição. Escreve uma prosa limpa, evidentemente com prazer - o prazer de contar sem intenção de brilhar. O POETA DO POVO Na obra de Drummond - já merecedor, com justiça de tantos ensaios e teses, "A Rosa do Povo" é um momento especial. Reeditada agora, 40 anos depois (Record, 206 páginas, Cr$ 9.900) conserva toda a importância que fez o crítico Antônio Houaiss a qualificar como "poesia marcada pelo momento histórico". Escrito durante a II Guerra Mundial, publicado em 1945 e jamais reeditado isoladamente, "A Rosa do Povo" foi o grande momento social na obra de CDH, que em seus poemas fala da preocupação ante o medo coletivo, a realidade burguesa do tempo da guerra e a miséria do mundo moderno, com seu materialismo e sua falta de humanidade. Preocupação presente, por exemplo, no poema "O Medo", onde diz: E fomos educados para o medo Cheiramos flores de medo Vestimos panos de medo De medo vermelhos rios/Vadeamos. Em "Nosso Tempo", o poeta diz: É tempo de meio silêncio de boca gelada e murmúrio palavra indireta, aviso na esquina Tempo de cinco sentidos num só o espião janta conosco Não é preciso um estudo aprofundado de "A Rosa do Povo" para sentir a euforia desta coletânea central, cheia de poemas de grande fôlego e de uma variedade verdadeiramente assombrosa. A autoconfiança do poeta nos surpreendente tanto mais quando não se rejeitam o ceticismo e a ironia congênitos na sua obra. São aceitos e transcendidos dentro da própria confiança. Iumma Maria Simon, em "Drummond: uma Poética do Risco" (São Paulo, Ática, 1978), lembrou que em "A Rosa do Povo" o poeta atingiu um clímax da prática participante - já esboçada em "Sentimento do Mundo" (1935-40), quando o "tempo presente" se instaura como matéria do poema - ao mesmo tempo que atinge a consciência mais profunda da "crise da poesia". Isso não quer dizer que em outras fases de sua obra não se verifique essa tensão. Porém, é neste livro que o conflito adquire sua dimensão mais angustiada: a da consciência dividida entre a fidelidade à poesia e a necessidade de torná-la instrumento de luta e de participação nos acontecimentos de seu tempo. DA ROSA AO CORPO Se em "A Rosa do Povo", há o Drummond no ápice da reflexão e indagação social, em "Corpo" (Editora Record, 124 páginas, capas e ilustrações de Carlos Leão), reunindo novos poemas, temos o poeta físico, amoroso, quase sensual e liricamente erótico, já se autodefinindo nas "Contradições do Corpo" que abre o volume: Meu corpo não é meu corpo é ilusão de outro ser. Sabe a arte de esconder-me e é de tal modo sagaz que a mim de mim me oculta Falando sobre a capacidade de Drummond renovar-se sempre, mantendo-se, ao mesmo tempo, rigorosamente fiel a si mesmo, o crítico Nogueira Moutinho diz que "cada novo livro que é uma agulha imantada apontando, nítida, o pólo magnético, embora o barco do poeta singre ondas encapeladas, veja-se varrido pela borrasca e pelo vento". Drummond, assim, cristaliza na forma mais pura a perplexidade e contradições, o espanto, o amargo gosto do tempo. Implacável, a ponta do diamante do verso, corta a carapaça vítrea que nos isola. E ao violar a fronteira mistificadora que estiola aquilo que cada uma talvez tenha de melhor, os poemas dele detém a fórmula reveladora do real, desse mal que a névoa do cotidiano obstina-se maliciosamente em ocultar". - Assim, após vastamente curtido a mágoa férrea e secreta da cidade em que nasceu, após ter escalavrado a alma com o espinho ressentido, o poeta agora redime o passado e se redime, salva num poema de pungente beleza toda a pureza da infância, que reemerge no homem maduro fluindo em melodia: "doce canção de Itabira". Nos poemas novos deste "Corpo" temos o Drummond tão maravilhoso e inovador como o mesmo de "Rosa do Povo". Talvez, melhor do que qualquer outra adjetivação, a própria frase do poeta, quase uma chave, na abertura dos poemas, já diga tudo: - O problema não é inventar. É ser inventado hora após hora e nunca ficar pronta nossa edição convincente.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Leitura
32
31/03/1985

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