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Aramis

A ponte de Cassavetes

"Nesta Cidade De 2 milhões de habitantes Estou sozinho no quarto Estou sozinho na América" ("A Bruxa", Carlos Drummond de Andrade). xxx Quando estreou no cinema, no modesto, mas genial "Um Homem Tem Três Metros de Altura"(A Man is Ten Feet Tall, 1956, de Martin Ritt), Jon Cassavetes trazia no personagem angustiado, solitário, inseguro que interpretava uma tremenda carga dramática que o identificaria com uma ampla faixa de sensível público, merecendo a partir daquele momento um crédito de confiança que confirmaria como expressivo ator - em mais de 20 filmes que fez até hoje, sempre manteve uma extraordinária dignidade - e, principalmente, com um dos mais notáveis diretores, apesar de uma filmografia irregular e parcialmente desconhecida no Brasil, onde até hoje permanecem inéditos dois de seus mais elogiados (e importantes) filmes: "Shadows", sua estréia na direção, em 1960 , e "Faces", que levou 3 anos para poder concluir. Um dos fundadores do New American Cinema Group, o chamado Free Cinema ou Escola de Nova Iorque, Cassavetes conseguiu os recursos para o seu primeiro filme, "Shadows", de uma forma original: através de uma emissão [radionfônica] fez um apelo e obteve os 40 mil dólares, com os quais rodou um filme contando a história de uma negra de pele clara em sua tentativa de integração na sociedade norte-americana. A repercussão que o seu filme - rodado originalmente em 16 mm - obteve, o levou a ter uma chance em Hollywood, onde faria dois filmes mais compreendidos pela crítica: "A Canção da Esperança"(Too Late Blues, 61), sobre um grupo de músicos de jazz e "Minha Esperança é Você"(A Child is Waiting, 63), sobre o problema das crianças excepcionais. Após os pessoal "Faces" (65/68), é que conseguiria junto à Columbia, condições para realizar sua produção mais ambiciosa: "Os Maridos" (Husbands, 1969/70). História de três velhos amigos que se reencontram em Nova Iorque para um enterro de um quarto companheiro e entendem, num momento, o significado da morte e a efemeridade da vida, a ilusão do status e todas as responsabilidades que o mesmo traz (família, emprego, vida social, etc.). "Husbands" foi um dos mais sinceros retratos do american way of live, com uma câmara profundamente crítica de Cassavetes, explorando ao máximo um estilo pessoal de interpretação, com longos diálogos - que Arnaldo Fontana definiria como solos jazzísticos - de seus personagens, levando até a exaustão uma tentativa de personalíssima comunicação personagem-público, o que evidentemente, poucos espectadores compreenderam. Exibido um único dia no Ópera (segunda-feira de Carnaval, 73), assim mesmo "Husbands" entrou na lista dos melhores filmes do ano passado e sua reprise no Scala, é obrigação de que João Aracheski, da Fama Filmes, não pode fugir. Quem teve sensibilidade suficiente para entender toda a extraordinária dimensão de "Os Maridos" - talvez um dos 10 filmes mais importantes da última década, (re) encontra em "Quando Fala O Amor"(Cine Condor, 22 a 28 de junho), o mesmo Sincero Cassavetes, aprofundando ainda mais a sua análise da solidão/sociedade americana (mas numa visão que não é americanofila, servindo a qualquer grande metrópole), com um filme sem concessões, corajoso e onde a [câmara] atua como um [bisturi]. A rigor, quase todos os longos diálogos dos personagens de "Minnie and Moskowitz" - em seus jazzísticos solos de interpretação. Utilizando a feliz imagem de Fontana - nos parecem uma longa poesia. Mas uma poesia de desespero, de solidão de pessoas perdidas na selva de cimento armado e concreto, das ruas de Nova Iorque ou Los Angeles, para onde Seymour Moskowitz (Seymour Cassel, excelente revelação) parte e onde encontra a igualmente solitária/angustiada Minnie (Gena Rowlands, esposa de Cassavetes, excelente atriz). As vezes, "Assim Fala o Amor" parece um conto-de-fadas, mas em que a fada má é a Solidão e na qual nem o [cáustico] final feliz, pode lembrar um verdadeiro happy-end. Um belíssimo diálogo-solo de Minnie com sua amiga Florence (Elsie Ames), em que ela fala do cinema, após assistir "[Casablanca]"(1942, de Michael Curtiz), questiona o próprio universo de ilusões da Usina de Sonhos, procurada com refúgio de solitários como Seymour Moskowitz e Minnie - aproximados pela admiração de Humphrey Bogart (1900-1957), homenageado pela citação de dois outros de seus melhores filmes - "O Falcão Maltrês"(The Maltese Falcon, 41, de John Huston, do romance de Dashiel Hammett) e, reconhecido apenas nos diálogos, "Uma Aventura na Martinica" (To Have And Have, Not, 1945, de Howard Hawks, do conto de Ernest Hemingway). As citações cinematográficas de Cassavetes - e a sua própria presença como Jim, um homem casado, 3 filhos, que abandona Minnie após a tentativa de suicídio de sua esposa (Judith Robert), estabelece uma identidade entre "Minnie and Moskowitz" e "Husbands": ambos hinos amargos sobre a solidão humana, de adultos tentando um (re) encontro através de um comportamento que lembra a infância. Em "Os Maridos", os 3 amigos abandonando, momentaneamente, suas famílias, empregos e a poluída Nova Iorque, pela também neurostizante Londres, como se estivessem num curto recreio escolar. Em "Assim Fala O Amor", Moskowitz, feio, cabelos longos e [mongólicos] bigodes, numa irresponsabilidade aparente para cobrir uma solidão - e que vê na desiludida Minnie, uma última esperança da ponte na distância da vida que o separa. Raras vezes um filme consegue tanta sinceridade quando estes "Assim Fala o Amor": os personagens criados por Cassavetes tem aquela espontaneidade característica dos grandes momentos da literatura/teatro/cinema e os longos diálogos - as [seqüências] em que ele permite aos intérpretes extraírem o máximo dos seres que vivem - colabora para a aproximação público/personagem, fazendo quase desaparecer a distância física que separa o acomodado consumidor (e aparentemente [tranqüilo] em seu status) da imagem a ser consumida (e presumivelmente apenas oferecendo [entretenimento]). Mesmo desconhecendo "Shadows" e "Faces", este "Minnie and Moskowitz" - que em boa hora a Universal exibe (iu) em uma programação regular, é a confirmação de que Cassavetes está entre os maiores talentos do cinema mais pessoal, mais honesto, mais gente que se faz hoje. E o cinema, hoje, é antes de tudo uma arte para gente sincera e honesta, que tenha(m) coragem de cortar o coração e lavar a alma.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Nenhum
Jornal do Espetáculo
14
02/07/1974

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