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Aramis

Quando os filmes entram nos filmes

Tal como na lei de Lavoissier, no cinema a transformação das imagens recria-se em outras imagens. Da respeitosa citação a simples referência, o cinema dentro do cinema é uma constante cada vez maior e isto pode-se observar em nada menos, explicitamente, do que em oito filmes levados ao Festival de Gramado. Assim, sem falar no deselvolvimento de todo um longa-metragem em torno do mais mítico nome do cinema americano, Orson Welles (1915-1985) em "Nem Tudo é Verdade", do catarinense Rogério Sganzerla - americano - , como não faltaram declarações de amor a magia do cinema, especialmente o americano - como "O Pecado Mora ao Lado", "Cantando na Chuva", "A Roda da Fortuna" e "Casablanca", é claro! xxx Em seu primeiro longa-metragem, o talentoso Wilson Barros, 39 anos, que deixou Gramado, no domingo, consagrado com seis Kikitos, repete um exorcismo característico dos cineastas em sua obra de estréia: explicitamente citar admirações e influências marcantes. Assim, num universo dark, entre travestis, marginais e corruptos, consegue entretanto, colocar uma seqüência no mais curtido cult movie do romantismo hollywoodiano, "Casablanca" (1942, de Michael Curtiz -, visto na televisão, pelo personagem Bimbo (Aldo Bueno), enquanto que, com coreografia de José Possi Neto, recria a antológica seqüência de "Dancing in the Dark" (Arthur Schwartz/Howard Dietz) de "A Roda da Fortuna" ("The Band Wagon", 1953, de Vincente Minelli), na qual a dança imaginada por Michael Kidd para Fred Astaire e Cyd Charisse - é recriada com Marília Pêra e Guilherme Leme. Tão maravilhosos que na sessão em que o filme foi projetado, no cine Embaixador, em Gramado, o público aplaudiu demoradamente. xxx Em "Besame Mucho", em sua crônica retroativa sobre a amizade, os amores, as angústias e os sonhos de quatro amigos - Xico (José Wilker), Tuca (Antonio Fagundes), Olga (Glória Pires) e Dina (Christiane Torloni) -, a citação cinematográfica não poderia faltar. E, num dado fundamental para o entendimento de toda uma seqüência, na Pirassanunga em que os jovens personagens tem sua descoberta do sexo, no mítico cine Rex (um cinema típico do interior, como havia milhares em todo o Brasil) as imagens de Marilyn Monroe e Tom Ewell, na mais famosa seqüência de "O Pecado Mora ao Lado" ("The Seven Year Itch", 55, de Billy Wilder) surgem na tela, com toda sua beleza: a saída de um cinema em que haviam visto "O Monstro da Lagoa Negra", Marilyn e Ewell passeiam pela 5ª Avenida e para fugir ao calor de verão, MM coloca-se sobre o respiradouro do metrô, com a saia esvoaçando... Uma imagem clássica e que tem sua seqüência colocada na tela - originalmente. Para obter da 20th Century Fox os direitos da sua utilização, Ramalho não só teve que pagar US$ 3 mil, como percorrer um cipoal jurídico junto aos herdeiros de Marilyn Monroe (falecida em 1962) que exigiram o prévio conhecimento do roteiro, para saber como as cenas seriam aproveitadas. No mesmo cine Rex, com sua iluminação neon, cores mágicas, que povoa uma das tantas e belas seqüências de "Besame Mucho", estão cartazes de outros filmes, curtidos por Ramalho em sua adolescência, como o "Ao Despertar da Paixão" (Jubal, de Delmer Daves). xxx Mesmo com uma ação transcorrida no árido subúrbio da zona Norte paulista, Carlos Reichenbach, apaixonado pelo cinema paulista, não deixa de prestar sua homenagem ao diretor japonês de sua preferência, fazendo os personagens assistirem "A Balada de Narayama". Nacionalisticamente, também duas homenagens objetivas: a escola pública do primeiro grau na qual as professoras que centralizam a história ensinam, chama-se Luis Sérgio Persom (1936-1976), que nunca foi professor, mas sim um esplêndido cineasta paulista, realizador do clássico "São Paulo S/A" há 22 anos passados. Já o veterano José Carlos Burle, cineasta carioca, que realizou mais de 100 filmes, é também lembrado: seu nome foi dado ao hospital que aparece na última seqüência. "Nem Tudo é Verdade" é homenagem ao cinema do começo ao fim. Afinal, o filme é sobre a passagem de Welles pelo Brasil há 45 anos, usando cenas de arquivo com cenas recriadas, nas quais o londrinense Arrigo Barnabé interpreta o diretor de "Cidadão Kane". xxx Nos curtas-metragens, também óbvias referências cinematográficas, "Frankenstein Punk", de Eliane Fonseca e Cau Hamburger - o grande premiado no Fest Rio e que saiu de Gramado com mais três troféus - tem toda sua construção em cima da música que Nacio Herb Brown/ Arthur Freed fizeram em 1953 para "Cantando na Chuva" ("Singing In The Rain", 52, de Stanley Donen e Gene Kelly) e do tema central de Ry Cooder para "Paris Texas" (1984, de Wim Wenders). Justamente devido a utilização básica destes dois temas musicais, Eliane e Cau ainda não puderam vender para o Exterior o seu elogiadíssimo filme de animação: os direitos autorais são tão complexos (e caros) que inviabilizam as negociações. Assim mesmo, uma distribuidora americana está disposta a correr o risco e levar o filme, tal a crença que tem em seu sucesso. Os desenhistas gaúchos Otto Guerra, Lancast Mora e José Maia em "Treiller - A Última Tentativa" fazem uma homenagem ao contrário: partindo dos mais conhecidos heróis das histórias-em-quadrinhos satirizam os personagens de Disney e outros, ao som da belíssima música de Geraldo Fach. Mário Kupperman, 47 anos, realizador de mais de 100 curtas e um longa ("O Jogo do Amor e da Morte", 1971) fez um filme de amor ao cinema: seu "A Cor da Luz" é o enaltecimento ao idealismo de um jovem apaixonado pelo cineclubismo numa cidade do interior, onde o cinema comercial fechou as portas. Kupperman ganhou um prêmio especial do júri justamente por fazer o enaltecimento ao cineclubismo e a resistência cultural. Já Antonio de Souza Filho, no média-metragem "Avesso do Avesso" (55 minutos) usa a citação do cinema como elemento dramático: Chico (Pedro Lacerda), operário de uma fábrica de cimento na periferia de São Paulo, mora em quarto de pensão e não tem amigos. Veio do interior e foge de seu mundo cinzento, nos dias de folga, nos cinemas que exibem filmes pornográficos - estabelece uma relação fantástica com as pornoatrizes, que passam a participar dos filmes. xxx São apenas algumas citações de uma safra de novos filmes - entre longas, médias e curtas que se voltam ao imaginário mágico do cinema. O cinema, usina de sonhos e ilusões, mais vivo e sensível do que nunca, como a recém-encerrada amostragem reunida em Gramado comprovou mais uma vez. FOTO LEGENDA - Orson Welles, numa cena recuperada por Rogério Sganzerla em "Nem Tudo é Verdade".
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
17
07/05/1987

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