Login do usuário

Aramis

Radio Days

Como em "Interiores" (1978), Woody Allen não aparece como ator. Só a sua voz, em off, narrando a história. Ou as estórias - já que através de um núcleo familiar, num bairro da Nova Iorque do final dos anos 30 à primeira metade da década de 40, se conduz toda a nostalgia de um período que nas músicas, nos mitos, no imaginário se transpõe do regional para o universal. A empatia é total. "A Era do Rádio" é a obra prima de Woody Allen, 51 anos, 16 filmes como diretor; dois como roteirista e ator; um só como ator - "Testa de Ferro por Acaso", 1976, de Martin Ritt; além de uma adaptação de um filme japonês: "Kinzino Kizi / What's Up, Tiger Lilly?", consegue ser tão bom - ou melhor - do que "Hannah e suas Irmãs". Aliás, será perda de tempo e energia estabelecer comparações e discussões entre um ou outro filme deste cineasta, que vindo da televisão, construiu em pouco mais de dez anos, uma obra fascinante enquanto universal em seu regional. Como já fazia o mestre Leon Tolstoi ("Se queres ser universal, cante a sua aldeia"), Allen captura corações e mentes, joga o afiado tridente da empatia que leva às lágrimas nostálgicas, ao falar de gente como a gente - mesmo em épocas e cidades diferentes. Mas os sentimentos são os mesmos. Como toda criança dos anos 30/40, Woody Allen (ou)viu o mundo pelas ondas hertzenianas do rádio, que vivia sua fase de ouro - antes do advento da televisão. E do mundo mágico da radiofonia, os grandes programas, os grandes artistas, aquelas músicas maravilhosas, Allen construiu, à sua maneira, uma nova obra-prima: "Radio Days", um filme que leva o espectador acima dos 40 anos às lágrimas da saudade de toda uma época. Afinal, assim como a nossa televisão foi decalcada do modelo americano, o rádio que se fazia nos Estados Unidos tinha a perfeita contrafação no Brasil - a começar pela Nacional, que disputando audiência com a Tamoio e outros prefixos - significava o grande veículo de comunicação nacional. O filme "Radio Days" é um soco na emoção e na saudade a partir da primeira seqüência. O humor dos dois ladrões que assaltando uma residência não resistem de atender um telefonema, e identificando as músicas que uma big band apresenta, acabam garantindo à família assaltada um caminhão de prêmios - é a abertura perfeita para as seqüências em tablaux em que a câmara de Carlo Di Palma vai integrando a todo o imaginário do mundo do rádios, às relações de uma típica família classe média - a partir do garotinho Joe (Seth Green, uma revelação, visto há 2 anos em "Hotel Muito Louco"/The Hotel New Hampshire, de George Roy Hill), seu pai (Michael Tucker), a mãe (Juli Kavner), a solteirona tia Bea (Dianne Wiest) - que lembra a sua personagem em "Hannah", o tio Abe (Josh Mostel), Rosso (Danny Aielo), o gangster Biff Baxter (Jeff Daniels, ator revelado em "A Rosa Púrpura do Cairo"), ganhando vida no roteiro sempre preciso de Allen, incapaz de exagerar com qualquer personagem, tendo o "timing" exato da presença, do humor. A atual mulher - Mia Farrow, como Sally White, a vendedora de cigarros que sonha com a glória de se tornar uma cantora de rádio e a ex-mulher, Diane Keaton, como a cantora da festa de New Year, ao final - são as presenças femininas de empatia. Mas, para orgulho verde-amarelo, a brasileira Denise Dumont teve sua chance de ouro para acontecer no cinema americano: aparece como uma cantora sul-americana, cantando "Tico Tico no Fubá" (Zequinha de Abreu), no melhor estilo de Abbe Lane, a crooner da orquestra do cubano Xavier Cugat, que nos anos 40, fazia, sonoramente, os americanos pensarem que a capital do Brasil era Buenos Aires. "A Era do Rádio" é um filme maravilhoso em qualquer prisma que se observe: seu humor inteligente, a recuperação de um veículo notável como força de comunicação - e que apesar de todo o poder da televisão e modernização da imprensa continua hoje mais importante do que nunca - e, especialmente, a forma espontânea, humana e sentimental que como são revistos os heróis, mitos, cantores e orquestras que, nos EUA, como no Brasil, faziam o rádio ser algo tão próximo a todos nós. Em especial, um aspecto faz de "Radio Days" um filme para ser visto/revisto: sua trilha sonora perfeita. Como em "Rose Purple of Cairo" e "Hannah and her sisters", Allen pessoalmente coordenou a trilha sonora, montando uma seqüência perfeita - que da abertura, com "The Flight of the Bumble Bee" (O Vôo do Besouro), onomatopéia "Musak" que o trumpetista Harry James surrupiou do russo Rimsky Korsakkov, encadeia uma seleção perfeita. No total, 36 temas com gravações originais - de interpretações famosas (Bing Crosby, Frank Sinatra, os Ink Spoots, Andrew Sisters, Tomy Dorsey, Benny Goodman, etc.) a nomes mais anônimos, num desafio a quem se julga expert na música americana. Reduzida a 12 fonogramas na edição da trilha sonora no Brasil (RCA, lançamento em julho/87, Cz$ 240,00 o exemplar), a sound-track de "Radio Days" consegue ter tanta emoção para as imagens visuais, como Nino Rotta, em seu momento maior, emoldurou "Amarcord", de Fellini - clara e assumidamente reverenciado por Allen neste seu filme. "A Era do Rádio" é o "Amarcord" woodeniano - tão lírico, belo e emocionante como a obra-prima do cineasta italiano. E quanto a dizer que este é o melhor filme de Allen, não cometo tal heresia: afinal, seu "Allen's Project 1987" já está em fase de montagem e, tão logo chegue às telas, pode fazer tudo recomeçar. Pode, não! Possivelmente fará, pois este homem é fogo em sentimentos & imagens. E a trilha não fica nos EUA, com uma ampla citação de Carmem Miranda (1909-1955), lembrada em "South American Way" (que lançou em sua estréia em Hollywood, "Serenata Tropical" / Down Argentine Way", 1940). LEGENDA FOTO - "A Era do Rádio" (Radio Days), produção de Jack Rolins / Charles H. Joffe, 1987. Fotografia de Carlo Di Palma. Trilha sonora supervisionada por Dick Hyman. Com Jeff Daniels, Mia Farrow, Seth Green, Diane Keaton, Jenneth Mars, Tony Roberts, Diane Wiest e outros. Em exibição a partir de hoje, no Cine Astor, 5 sessões. Ingressos a Cz$ 50,00.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Nenhum
1
03/09/1987

Enviar novo comentário

O conteúdo deste campo é privado não será exibido publicamente.
CAPTCHA
Esta questão é para verificar se você é um humano e para prevenir dos spams automáticos.
Image CAPTCHA
Digite os caracteres que aparecem na imagem.
© 1996-2016. tabloide digital - 35 anos de jornalismo sob a ótica de Aramis Millarch - Todos os direitos reservados.
Desenvolvido por Altermedia.com.br