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Aramis

A Refazenda de Gil

Gilberto Gil é um compositor que, como Caetano Veloso, preferimos admirar na distancia. O relacionamento pessoal, ao [contrário] da maioria dos grandes talentos, não contribui em nada para a melhor compreensão da obra do chamado grupo baiano, muito pelo contrário. Assim, as propostas musicais de Gil (como Caetano) são em nossa visão particular, melhores colocadas em discos - do que em seus próprios espetáculos elétricos, exceção talvez de seu atual, "Refazenda" (apresentado até o último no auditório da Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, agora em circuito universitário, em breve no Paraná), que pretende colocar "a intenção" de seu atual trabalho. Enquanto em São Paulo, a jornalista Marlene Benicchio ("Última Hora", 1º/10/75), tentou definir "Refazenda", na explicação do próprio Gil ("Refazenda é um signo poético, um estado de espírito instaurado para o meu próprio governo. Refazenda é uma palavra concreta, vinda de refazer, rever, onde entra fazenda no seu sentido geográfico, ou mesmo de tecelagem"), no Rio de Janeiro, duas semanas antes, em entrevista a Antonio Oséas ("Critica", 22 a 23/9/75), Gil foi menos objetivo: - Tudo é um universo de conceitos poéticos, é um universo que diz muito do e para o criador. Isso no sentido semântico, porque o resultado expresso está na música, no disco, é bastante claro e eu acho que dispensa definições. Aos 11 anos de carreira (10 dos quais profissional), 33 anos de idade, o baiano Gil, formação universitária (é diplomado em administração de empresas), com profundas ligações ao movimento de poesia concreta, dos irmãos Campos, tem definido em longas entrevistas (como a já citada para "Crítica") suas posições perante a música, a cultura e o momento brasileiro. Mas ao lado de todo blá-blá, Gil propõe a compreensão de seus projetos através de sua própria música, de seus discos feitos na Philips, numa regularidade de um, ao menos, por ano - todos com novas propostas e posições. Agora, diz Gil, "estou cansado de ser só vanguarda". E explica: - Com esse trabalho da "Refazenda", eu estou parando, deixando a procissão seguir e me incorporando à retaguarda dela. Não é só a vanguarda que existe: e muitas vezes é bom pensar estar lá na retaguarda. Quem está atrás vê mais: pode ver para onde se está indo. E o negócio é ficar aqui atrás, porque na retaguarda também precisam da gente. A poesia não pode ser só vanguardista. Já planejando três novos discos, numa espécie de revisão de 10 anos de carreira (ao um dos quais pretende, inclusive, dar o nome de "Fé Menina"), "Refazenda" é um disco para ser meditado, embora, ele não tenha gostado da adjetivação que Ana Maria Bahiana deu ao seu atual trabalhando, chamando-o de "meditativo". As onze faixas de "Refazenda" (Philips, 5349152) são músicas para serem ouvidas com atenção, em que as letras mostram a segurança com que Gil se lança numa proposta poética, difícil de ser assimilada a primeira vista - e irritando, naturalmente, os consumidores tradicionais de emepebe. Assim, não é fácil aceitar a musica de Gil, mas seria estupidez ignorar suas proposições. Das novas musicas deste [elepê], particularmente destaca "Pai e Mãe", a proposta mais audaciosa e chocante ("Eu passei muito tempo/ aprendendo a beijar/outros homens, como beijo o meu pai/eu passei muito tempo/pra saber que a mulher que eu amei/que amo, que amarei/ será sempre a mulher, como é minha mãe). Mas, todas as suas novas composições são densas - desde a descodificação de palavras ("É, povo é", "Ela", e "Essa é pra Tocar no Rádio") até os textos em blocos, quase uma antipoesia, uma antiletra musical: "Refazenda", "Retiros Espirituais", "O Rouxinol" (com um belo achado poético; "Joguei no céu o meu anzol/pra pescar o Sol/ mas tudo o que eu pesquei/foi um rouxinol") e "Meditação". Particularmente, achamos "Jeca Total", a faixa mais consciente e interessante deste elepê, traduzindo indagações e contestações/constatações contemporâneas, integrando as linguagens rural/urbana, como Gil vem tentando, aliás, em muitas outras musicas: Jeca total deve ser Jeca tatu presente, passado, representante da gente no senado em plena sessão, defendendo um projeto que eleva o teto salarial do sertão. Uma presença [fortíssima] em "Refazenda" é o acordeonista Dominguinhos (José Domingos de Morais, 34 anos), que com seu acordeon de 120 baixos faz parte também do show de Gil. O autor de "Eu Só Quero um Xodó" é o compositor de duas das faixas deste elepê "Tenho Sede", em parceria com Anastácia e "Lamento Sertanejo" (em parceria com Gil): Por ser de lá/do sertão, lá do serrado lá do interior, do mato/da catinga, do roçado eu quase não saio/e eu quase não tenho amigo. Em "Essa É pra Tocar no Rádio", o baterista é Tuti Moreno, enquanto em "Pai e Mãe", ouve-se o cavaquinho de Canhoto, o violão de 7 cordas de Dino e a flauta de Altamiro Carrilho. Em "Jeca Total", o bombardino é de Luiz Paulo. Nas demais faixas, ótimos instrumentistas também: Dominguinhos (acordeom), Moacir Albuquerque (baixo), Caiquinho Azevedo (bateria), Hermes e Ariovaldo (Percussão), Maciel e Bogardo (trombones), Jorginho, Celso e Geraldo (flautas), Formiga, Barreto e Niltinho (Pistons).
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Nenhum
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12/10/1975

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