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Aramis

Sabor (amargo) de Brasil (II)

Em Cannes, em maio, "O Homem de Ferro", que Andrez Wajda havia recém-concluído, foi premiado com a Palma de Ouro. Os acontecimentos políticos da Polônia - dos quais é, de certa forma, uma espécie de documentário, podem ter influído na decisão do júri, mas não retiram a grandiosidade daquela obra, uma seqüência a "O Homem de Mármore", já visto pelos curitibanos. Em setembro, em Veneza, "Eles Não Usam Black-Tie" foi premiado com o Leão de Ouro, trazendo uma (justa) euforia aos meios cinematográficos brasileiros - há anos sem uma grande vitória internacional. Dizer que o júri de Veneza premiou o filme de Hirzmann como uma manifestação política, considerando o tema que aborda - o movimento operário, greves e conflitos sociais - seria também injusto. Entretanto, é óbvio que o filme de Hirzmann, como a fita de Wajda se inserem naquela categoria de obras-documentos de nossa época, de nossos dias. xxx Na penúltima seqüência de "Eles Não Usam Black-Tie" (Cine Plaza), após voltarem do guardamento de Bráulio, operário e líder sindical, assassinado pela polícia no movimento grevista, Otávio (Gianfranciesco Guarnieri) e Romana (Fernanda Montenegro), sozinhos na cozinha da casa humilde, não falam. Romana começa a catar o feijão do dia seguinte. Abre a lata e espelha na mesa. Otávio deixa o copo de aguardente e começa a auxiliá-la. De repente, as mãos de romana e Otávio se apertam sobre o feijão. Só esta seqüência, já justifica as lágrimas, mas no mínimo, a emoção maior do espectador sensível. E consagra, definitivamente, "Eles Não Usam Black-Tie" como o melhor de todos os filmes - projetados até agora em Curitiba neste ano e um dos mais importantes filmes da história do cinema brasileiro. xxx Uma emoção, uma [lágrima] até, a cada seqüência. Como disse José Carlos Avellar, "Eles Não Usam Black-Tie" busca compreender pela emoção. Uma emoção adulta e seca. Não o pieguismo, nem o panfletarismo, mas a realidade, a projeção no retângulo do cinema de imagens brasileiras, imagens de um Brasil com sabor amargo. Se Jorge Bodanski / Gauer / Orlando Senna em "Iracema - Uma Transa Amazônica", visto até ontem no cine Groff, desmistificam o "Brasil grande" da propaganda oficial do Governo Médici, numa obra visceralmente corajosa de Leon Hirzmann/Gianfranciesco Guarnieri, revisitando o texto que o segundo escreveu há um quarto de século, mostram que pouca coisa mudou. Otávio, em 1956, na encenação que o Teatro de Arena fez de "Eles Não Usam Black-Tie" era interpretado por Eugêncio Kusnet e transmitia um líder operário radical de formação stalinista. O Otávio que Gianfranciesco vive agora (ele que na versão teatral era Tião, o filho fura-greve) é um operário liberto do stalinismo. Como acentuou Luciano Ramos ("Folha de São Paulo", 2/10/81), "mostra-se humano, amante do sorriso, da piada, da cachaça e do sexo. Para um homem como ele, as pregações libertárias de Fernando Gabeira representam chuva que cai num terreno encharcado". A emoção que "Chuvas de Verão" e "Bye Bye Brasil", de Cacá Diegues ou "Tudo Bem", de Arnaldo Jabor, provocaram em anos anteriores, amplia-se agora perante "Eles Não Usam Black-Tie": um filme extremamente verdadeiro e honesto, com uma identificação plena a uma realidade que extrapola o universo operário. A atualização que Guarnieri fez de seu texto - transferindo a ação do Rio para São Paulo, com um natural salto de 24 anos, acrescentando alguns personagens - como o radical Santini (Francisco Milan), não modificou em nada um dado comportamental. O texto de Guarnieri é documental/emocional, dentro daquela realidade que tantos buscam transmitir e que poucos conseguem. O operário dentro do cinema brasileiro tem sido uma presença solitária anônima e rara. Poucos filmes conseguiram transpor, com uma visão adulta, sem pieguice, a sua presença em termos reinvidicatórios. Talvez uma das poucas vezes em que se colocou problemas sociais proletários, com coragem e profundidade, foi em "A Queda", de Ruy Guerra, uma produção modesta e que passou quase despercebida. Com "Eles Não Usam Black-Tie" a faixa de espectadores é aumentada: a premiação em Veneza, a sustentação publicitária (inclusive com chamadas pela televisão) está fazendo com que um público interessado compareça no cine Plaza e, por certo, garante no mínimo, mais uma semana de exibição deste filme. E é importante que "Eles Não Usam Black-Tie" seja visto e discutido. A colocação dos operários e do universo familiar proletário pode (e deve) motivar diferentes colocações. O comportamento político-ideológico de Otávio, Bráulio (Milton Gonçalves), Santini ou Tião (Carlos Alberto Ricelli), ou mesmo o delator (Anselmo Vasconcelos) proporcionam a que questões importantes voltem a serem discutidas, já que um filme não se encerra ao acender as luzes da sala de projeção. As imagens devem permanecer na retina (e na consciência) do espectador, levando consigo aquilo que lhe foi dado ver/pensar. Hirzmann, 43 anos, ex-cineclubista e tendo participado do CPC-UNE dos anos 60, já em sua obra de estréia, o curta "Pedreira de São Diogo" (um dos episódios de "Cinco Vezes Favela", nunca projetado comercialmente em Curitiba), se voltava [à] visão das camadas mais humildes da população. Alguma [seqüências] da "Pedreira de São Diogo" - que tinha como tema a resistência de um grupo de favelados contra a demolição de seus barracos - sugeriam imagens de Eiseistein. Após um curta-metragem igualmente inédito para os curitibanos ("Maioria Absoluta", 64), Hirzmann realizava aquele que já era o primeiro grande filme neo-realista após "Rio, 40 Graus" (54, de Nelson Pereira dos Santos). "A Falecida", até hoje a mais feliz adaptação de um texto de Nelson Rodrigues, Fernanda Montenegro (interpretando a mulher que se convence de que morrerá de câncer, criou uma personagem inesquecível, "Garota de Ipanema", em 1967, superprodução baseada na música de Tom/Vinicius, foi um intermezzo frustado para Hirzmann: não assumindo a simples condição de um filme entretenimento, não conseguiu também fazer o retrato sociológico da juventude Zona-Sul dos anos 60. "América do Sexo", episódio rodado em 70, não chegou aos circuitos comerciais nacionais, mas em compensação, "São Bernardo", 73, rodado com imensos sacrifícios (e que o levou a sua produtora [à] falência) foi uma seca, cortante transposição de um dos mais amargos romances de Graciliano Ramos. Sete anos passaram até Hirzmann conseguir voltar ao longa-metragem. E o fez de uma forma definitiva: "Eles Não Usam Black-Tie" é, em nosso entender, um filme que se vê com emoção (e lágrimas) a cada seqüência, e, de certa forma, um marco dentro do cinema brasileiro - uma volta ao neo-realismo. Todos os personagens chegam ao espectador, o universo simples de uma vila operária alcança a empatia universal (e se assim não fosse, o filme não teria recebido as premiações em Veneza). Guarnieri, um ator extraordinário (tanto quanto dramaturgo), compõe um Otávio inesquecível, mas é Fernanda Montenegro que como Romana é definitiva. Anna Magnani ou Anne Bancroft não fariam melhor o seu papel. Bete Mendes, como Maria - a noiva grávida de Tião, explode um talento que a televisão reprime e até Ricelli, consegue sobreviver artisticamente. O grande e maravilhoso mestre/maestro Radamés Gnatalli compôs a trilha sonora perfeita, moderna e equilibrada para este filme definitivo. Numa das últimas cenas, Otávio diz a Chiquinho (Flávio Guarnieri) seu filho, no guardamento de Bráulio: "Um dia, teus filhos vão estuar o Bráulio na História do Brasil". Pode-se dizer: o dia em que se estudar a sério a História do Cinema Brasileiro, será indispensável a projeção de "Eles Não Usam Black-Tie". LEGENDA FOTO: Otávio (Guarnieri) / Romana (Fernanda Montenegro): a emoção, a ternura e a perenidade em "Eles Não Usam Black-Tie", uma obra definitiva do cinema brasileiro.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
6
15/10/1981

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