Login do usuário

Aramis

A teia da dignidade e da sensibilidade

<< O corpo está preso A mente escapa em liberdade Grandes feitos exigem Mente ampla e temperada >> (Ho-Chi-minh, << Diário de prisão >>) xxx Em duas páginas da revistas-programa de << O Beijo da Mulher Aranha >> (auditório Salvador de Ferrante, até amanhã), Manual Puig o autor, fala de cinema. Lembra a fascinação ao descobrir a usina de sonhos na pequena cidade de General Vilegas, onde nasceu, em 1932, de suas experiências em Roma e Paris e fez um pequeno ensaio sobre o cinema pos-anos 40. Os textos-depoimentos dos atores Rubens Corrêa (Molina) e José de Abreu (Valentim) também são mergulhos na memória das matinês cinematográficas de suas infâncias. Durante todo o primeiro ato, Molina conta para Valentim sobre um filme. A narração é entrecortada, o público ri - e pouco a pouco, o espectadores passa a imaginar o filme. Curiosamente, na revista-programa não há a menor indicação sobre qual é o filme que entusiasmou tanto a Molina - e cujo suspense narrativo alcança também Valentim Arregui Paz, o preso 16.115 da Penitenciária Villa Devoto, Buenos Aires, acusado de ações subversivas. O filme é << Sangue de Pantera >> (Cat People), realizado em 1942 pelo cineasta Jacques Tournieur, com Simone Simon, atriz francesa que teve marcante atuação em Hollywood nos anos 40. Há 2 anos, Paul Schreider refilmado << Cat People>., com Natassia Kinski, mas sem alcançar sequer 30% da classe da obra original - um primor de suspense e terror, numa produção que mais do que os méritos do diretor, identificavam o produtor Val Lewton (Vladimir Ivan Lewton, Yala, Rússia - 1904- Hollywood, 1951), que supervisionou uma série de filmes de terror (<< A Morta Viva>, << O Homem Leopardo >>, << Sangue de Pantera >>, << A Maldição do Sangue de Pantera >>, etc). E é o << Cat People >> original (e não a medíocre refilmagem feita em 1980) que Molina descreve, com uma riqueza de detalhes, nos diálogos com o seu companheiro de cela. O envolvimento que sua narração vai fazendo, tal como uma teia de aranha, chega não só ao revolucinário Valentim, mas transpõe também ao público - que fica curioso em saber o próximo segmento do filme - praticamente inédito para 90% do público (sua exibição comercial no Brasil foi 1943/48, e, ao que nos consta, não foi ainda apresentado pela televisão, nem existem cópias em video-cassete). Estas colocações cinematográficas - da paixão de Puig pelo star syste (tanto é que, há 15 anos, deu o título de << A Traição de Rita Hayworth >>, ao seu primeiro romance) ao próprio programa - marcam, de certa forma, o ritmo desta peça que desde agosto/81 vem lotando teatros, no Rio e São Paulo, e agora, após Curitiba, num roteiro por outras cidades (Londrina, Campo Grande etc.). Lento - mas jamais arrastado - no primeiro ato, << O Beijo da Mulher Aranha >> adquire um ritmo dinâmico na segunda, acavalando-se, inclusive, de tal forma que a descrição do final do filme se confunde com a narração em off do que aconteceu quando Molina deixou o presídio. O profundo humanismo dos personagens - o homossexual Molina, colaborador do sistema para tentar arrancar do revolucionário Valentim informações sobre o movimento clandestino, mas que se conscientiza ao final - e o duro Valentim que acaba se integrando (entregando) ao envolvimento com Molina - dão ao texto de Puig, a grande dimensão - que saiu do livro para o palco e, que agora, caberá ao cineasta Hector Babenco transferir nas imagens cinematográficas, no filme já em fase de realização, com dois atores americanos - Raul Julia (Valentim) e Willians Hurt (Molina), que há duas semanas se encontram em São Paulo. Ivan Albuquerque - que há mais de 15 anos desenvolve um trabalho integralíssimo a Rubens Corrêa - é um diretor da mais absoluta segurança. Rubens Corrêa, já por 4 vezes premiado com o Moliére (3 como ator), é um dos mais perfeitos intérpretes dos palcos brasileiros. O entendimento entre o diretor-ator, teria que resultar num trabalho perfeito: Corrêa, como Molina, é o ponto alto da peça, tornando, inclusive, difícil a José de Abreu colocar o seu personagem - bem menos catalizador. Na noite de estréia (e não sabendo se isto se repetiu nos outros dias), o público insistia em gargalhar, como se estivesse frente a uma comédia. Embora haja momentos de descontração, << O Beijo da Mulher Aranha >> não é uma comédia. é uma peça de (profundos) sentimentos, jamais chegando ao dramalhão - mas num envolvimento passional, tal como a própria trilha sonora, que com perfeição inclui boleros e tangos: << Mi Carta >> (Mário Clavel) na voz de Elvira Rios (quem dela se lembra?), << Solamente uma vez >> (Agustin Lara), Te Quiero Dijiste >> (M. Grever) e, especialmente, duas obras-primas de Astor Piazzola: << Chant et Fugue >> e << Years of Solitude >> (com solo de sax de Gerry Mulligan). Este último tema, que Piazzola compôs há 7 anos para um filme dirigido por sua amiga Jeanne Moreau é parte integrante da dramaticidade do final. Tal como o tema nos remete a uma profunda solidão, como um arpão dalicerando um coração, o sax de Mulligan sublinha toda a dramática narrativa final - simbólica e bela. Raras vezes, um tema musical se identificou tanto a um momento teatral. Dentro de um cenário único, localizado por Anísio Medeiros, os dois personagens criam todo um mundo << muito seu >> - e, inteligentemente, a direção evitou o clima << huis clos >> e também as apelações - apesar de cenas aparentemente chocantes, como a relação sexual, de Valentim e Molina. A dignidade, entretanto, é a palavra que melhor define tanto o texto, a filosofia dos personagens como está montagem - uma peça adulta, profunda, e que, com perfeição, teve uma sintética definição de um dos mais lúcidos críticos brasileiros, Yan Michalski, do << Jornal do Brasil >>: - << A peça é um seco golpe no estômago, um grito desesperado contra a violência e os preconceitos, mas também um ato de fé nas prodigiosas possibilidades do ser humano, na sua capacidade de defender a sua dignidade dentro das mais adversas circunstâncias >>. FOTO LEGENDA - Valentim/Molina: dignidade.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
1
08/10/1983

Enviar novo comentário

O conteúdo deste campo é privado não será exibido publicamente.
CAPTCHA
Esta questão é para verificar se você é um humano e para prevenir dos spams automáticos.
Image CAPTCHA
Digite os caracteres que aparecem na imagem.
© 1996-2016. tabloide digital - 35 anos de jornalismo sob a ótica de Aramis Millarch - Todos os direitos reservados.
Desenvolvido por Altermedia.com.br