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Aramis

Teorema com luxo em Beverly Hills

"Ridento castigat moris" (provérbio latino) Antes de tudo é preciso conservar o bom humor. Ou como dizem os irreverentes, às vezes é melhor perder um (falso) amigo do que uma boa piada. Paul Mazursky, 56 anos - que começou no cinema interpretando o adolescente rebelde Emmanuel Stoker, um dos alunos transviados que infernizavam a vida do professor Richard Dadier (Glenn Ford) num clássico renovador do cinema americano ("Sementes da Violência/The Blackboard Jungle", 1955, de Richard Brooks) é hoje, três décadas depois, ainda um contestador de valores fixados no american way of life. Se em "Sementes da Violência" (famoso também por ter trazido em sua trilha sonora o "Rock Around the Clock", de Bill Halley, que desandou todo o movimento do rock'n'roll), o então jovem Mazursky era apenas um dos liderados do rebelde Gregory Miller (Sidney Poitier, na atuação que o transformaria em famoso ator), hoje, diretor de prestígio, pode tocar fundo em feridas do comportamento da tradicional família ocidental. Inteligentemente, tem sabido fazer isto com humor, leveza e finura - obtendo comunicação como público. A mais recente prova é "Um Vagabundo na Alta Roda" (cine Lido, 3ª semana), um dos melhores filmes lançados na temporada e que entra naquela categoria de "comédia que faz pensar". A primeira vista, a lembrança é inevitável: um "Teorema" transposto da aridez italiana com que Pier Paolo Pasolini (1922-1975) ambientou o seu mais famosos filme em 1968, para a sofisticação, luxo e conforto do bairro onde vivem as pessoas com a maior renda per capita do mundo: Beverly Hills, Los Angeles, costa Oeste dos Estados Unidos. Assim, como em "Teorema", um vagabundo (Terence Stamp, ator inglês, em marcante atuação) mudava com sua aparição e seu poder de sedução o universo de toda uma família, incluindo a empregada mística, em "Down and Out in Beverly Hills", Jerry Baskin (Nick Nolte), também um dropout ao tentar um (falso?) suicídio na piscina da mansão de uma família milionária, os Whiteman, acaba, indiretamente, contestando e modificando os padrões de comportamento do bem-sucedido empresário de meia idade, Dave (Richard Dreyfus), fabricante de cabides; sua enfastiada esposa, Barbara (Bette Midler), o filho Max (Ivan Richards), a filha Jenny (Tracy Nelson), e a empregada chicana Carmen (Elisabeth Peña). Se Pasolini foi às últimas conseqüências da comunicação física de seu verdadeiro anjo exterminador em "Teorema", com explícitas colocações de homossexualismo entre o forasteiro com o pai e o filho da família que abriga (após a sedução das mulheres), Mazursky não pretendeu tanto. No máximo, Jerry Baskin abre a Dave Whiteman as portas da percepção para uma vida mais liberta - como a noite de bebida e sexo na praia de Malibu - ou estimula ao adolescente Max a assumir o seu homossexualismo. Roteirista de imaginação (em 1967, escreveu, por exemplo, "O Abilolado Endoidou", de Hy Averte, uma das melhores comédias com Peter Sellers, 1925-1980), Mazursky sabe trabalhar, com classe, no roteiro de seus filmes. Tanto é que ao estrear como diretor, em 1969, abordou um tema tabu para a época: o swingle (troca de casais). Entretanto, tratou do assunto com tanta delicadeza e inspiração que "Bob, Carol, Ted & Alice" não chocou a ninguém e foi um grande sucesso - terminando com uma canção-esperança da maior beleza: "What The World Knows Now Is Love". Em sua filmografia, ao lado de duas declaradas homenagens a cineastas europeus que tanto o influenciaram - Fellini em "Alex In Wonderland" (1970), e François Truffaut (1932-1984) em "Willie & Phil" (1981, refilmagem de "Jules e Jim/Uma Mulher Para Dois") - estão filmes com a abordagem de temas de empatia mundial. Por exemplo, as tumultuadas relações conjugais em "Amantes em Veneza" (Blume in Love, 1972), o desajustamento dos velhos ("Harry e seu amigo Tonto", 1974, que deu ao veterano Art Carney, aos 56 anos, o Oscar de melhor ator) e os sonhos da juventude intelectual dos anos 50 ("Próxima Parada: Bairro Boêmio/Next Stop: Greenwich Village", 1976). Obviamente, que Mazursky não parou de levantar as inquietações do americano contemporâneo. Há quatro anos, trabalhando com o mesmo roteirista Leon Capetanos que com ele escreveu este "Um Vagabundo Na Alta Roda", Mazursky se lançou numa aventura que poderia frustrar sua carreira: a modernização de uma das obras-primas de William Shakespeare - "A Tempestade". Trazendo a ação contemporaneamente e fazendo do personagem central um arquiteto (Philip/John Cassavetes) desiludido com a megalópolis novaiorquina, que busca numa ilha grega o encontro da paz e tranqüilidade - representado pela volta à natureza e encontro com personagens simples, como o pastor Kalibanos (Raul Julia, num de seus primeiros papéis no cinema - hoje consagrado após ter sido o Molina de "O Beijo da Mulher Aranha") e a ingênua Aretha (Susan Sarandon). Como acentuou o crítico Edmar Pereira, Mazursky conseguiu em "A Tempestade", a partir do texto shakespeariano, realizar uma tentativa de fuga fantástica das camisas de força do cotidiano capitalista, recriando imagens com humor caloroso. É importante, cremos, retomar a coerência de Mazursky em sua obra inquieta - mas sempre de extremo refinamento e fácil comunicação - para se entender melhor a malícia, a sátira e mesmo as inquietações deste admirável "Um Vagabundo na Alta Roda". Pelo seu próprio humor americano, há gags que são melhor absorvidas a partir da melhor (in)formação do espectador. Por exemplo a espirituosidade de chamar de Kerouac o seu cão infiel - óbvia referência ao primeiro dos escritores beatniks, Jack (John) Kerouac (Massachussets, 12/3/1922 - Virgínia, 19/8/1976), que só há 2 anos, com a tradução de sua obra mais famosa ("On the Road", 1951, lançada pela Brasiliense) passou a ser mais conhecido no Brasil. Já o cão da família Whiteman - que substitui a Kerouac no afeto a Baskin - tem o sofisticado nome de Matisse, referência ao pintor francês Henri (Le Cateau, 1869-Nice, 1954), cachorro que tem até um psicólogo, o dr. Von Zimmer (Donald Muhich). São pequenos detalhes, é claro, mas que mesmo passando diluídos ao espectador comum, enriquecem a narrativa e o humor de Mazursky, que a exemplo do que têm feito vários outros cineastas americanos, voltou-se neste "Down and Out in Beverly Hills" também a refilmagem de um texto teatral que, há 55 anos já havia sido levado à tela. Entretanto, assim como "A Tempestade" foi redimensionada contemporaneamente, também a peça "Boudou sauvé des eaux" de René Cauchois ficou apenas como ponto de partida, para que, na ótica americana (embora universal em sua mensagem) de Mazursky, vários outros ingredientes fossem dilacerados saudavelmente - como a síndrome da segurança e mesmo a convivência de negros num bairro WASP como Beverly Hills, ironicamente representado pela presença do bem-sucedido produtor fonográfico Orvis Goodnight - interpretação de Little Richard (Richard Penniman, Macon, Georgia, 1935), pianista e cantor, criador de sucessos como "Tutti Frutti" - um dos muitos temas que Andy Summers aproveitou na ótima trilha sonora. Aliás, pena que Bette Middler - excelente comediante mas também marcante cantora - ficasse ausente musicalmente da trilha embora cantarole, num momento, um belo standard dos anos 50.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
13
14/01/1987

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