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Aramis

As teses do Paraná (II)

Ao lados dos méritos universitários que levaram a professora Veraluz Zicarelli Cravo merecer aprovação com média 9,6 na dissertação apresentada ao Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, há apenas uma semana, "O Ramal da Fome" (244 páginas, 30 exemplares, edição mimeografada da autora) é o primeiro estudo que se faz no Brasil sobre as condições de trabalho dos pequenos agricultores que se dedicam a produzir fumo, utilizado como matéria-prima pelas multinacionais que exploram, uma das mais prósperas e rendosas indústrias do mundo a dos cigarros. Por isso, o seu trabalho realizado com a independência que como professora universitária lhe permite, e mesmo restrita a uma pesquisa limitada a um pequeno universo e esbarrando em intransponíveis barreiras, principalmente quando se refere aos dados e cifras das grandes corporações que utilizam a força da mão-de-obra, baratíssima, cada vez mais empobrecida, tem um valor tão grande que justifica que todos aqueles que se interessam de uma forma ou de outra pela economia e problemas não só do Paraná, mas mesmo de outros Estados onde existem sistemas idênticos, vejam na tese da professora um valioso e honestíssimo ponto de partida para estudos mais profundos. De princípio, a tese impressiona pela simplicidade e objetividade. Fugindo da linguagem técnica, o chamado "economês" ou "sociologuês", que torna maçante e quase intelegível à compreensão de tantos ensaios e teses bem intencionados, a professora Veraluz Zicarelli Cravo, agora a caminho de mestre em Ciências Sociais na área de Antropologia da UFP, buscou um tom direto, recheando seu trabalho de informações precisas, trechos de depoimentos colhidos junto as famílias, de agricultores pesquisadas e permitindo o estabelecimento de muitas conclusões - que evidentemente, não cabem no curto espaço de uma coluna de jornal. xxx Município localizado numa região que vem sendo empobrecida nas últimas décadas especialmente pela ganância do homem (indústria extrativa - madeira, erva-mate, etc). Irati, o espaço escolhido pela professora para sua pesquisa, passou a ter a cultura do fumo estimulada pela Companhia Souza Cruz - Indústria e Comércio, especificamente a partir de 1962, coincidindo com o período em que a indústria fumageira em Santa Cruz do Sul entrava em crise. E justamente a estagnação econômica do Sul do Paraná e o grande número de minifúndios garantiam um exército de força de trabalho que a empresa multinacional pode dispor segundo seus interesses. E justamente as multinacionais que exploram a indústria do fumo tem interesse no estímulo do seu plantio, em forma de minifúndios, por ser esta uma cultura difícil, que exige grande mão-de-obra e, ainda no Brasil, sem qualquer processo de mecanização. Obviamente, os pequenos agricultores - enfrentando contínuos problemas (política de preços mínimos, condições climatéricas adversas, dificuldades de crédito, etc.) tiveram, por parte das multinacionais interessadas na compra da matéria-prima - no início a Souza Cruz, nos últimos anos a entrada de uma concorrente - a Tabacos Brasileiros Ltda., controlada por um grupo holandês/americano aliado ao grupo econômico Universal - uma série de estímulos, no que, de um lado, mostra os benefícios que a paulatina substituição do cultivo de outros produtos, principalmente os de subsistência pelo fumo. E justamente a partir deste ponto é que a tese da professora Veraluz Cravo, num trabalho de mais de um ano de cuidadosa pesquisa, é que faz várias colocações, que justificam, plenamente, que o assunto seja abordado, e mesmo passe a preocupar os homens responsáveis pelo planejamento da agricultura do Estado. Logo na página 3 de sua tese, acentua que de uma maneira genérica os colonos, evidentemente não só da região pesquisada, mas de várias partes do nosso País, praticam uma cultura de subsistência. Em termos abstratos, este processo de trabalho, que relaciona homem e natureza é condição natural da vida humana e atividade criadora de valores de uso. O colono está preocupado em produzir aquilo que é essencial ao seu padrão alimentar, mas, na medida em que está inserido no modo de produção capitalista, parte de sua produção assume a forma de mercadoria e lhe é expropriada na esfera da circulação ou pelas próprias condições do processo de produção. Na condição de colonos-fumeiros passam a produzir segundo as exigências do capital industrial. O fumo, embora, produto agrícola, é diferente: o colono não pode apropriar-se dele, não serve para alimentá-lo. A atividade que desenvolve como fumeiro não tem o mesmo significado que a cultura de subsistência: é um trabalho totalmente alienado e seu produto mercadoria que interessa apenas às companhias de fumo. No Brasil, o setor do fumo é dominado pelo capital multinacional cujas empresas encontram situação bastante favorável: além de um significativo mercado consumidor, a força de trabalho para mover as indústrias de cigarros e usinas de beneficiamento é barata e abundante -. Assim explorar-se o colono-fumeiro, num trabalho árduo e mal remunerado, que garante a matéria-prima das indústrias de cigarros ou o comércio exportador. Difunde-se na sociedade brasileira, especialmente entre os jovens, o hábito de fumar, fazendo crescer o consumo no País. E, fundamentado ponto por ponto, com total isenção - visando apenas fazer uma dissertação de nível universitário - a jovem professora vai oferecendo dados precisos sobre as condições de trabalho dos fumeiros, os interesses em estimular esta forma de cultuar (embora nas zonas em que haja maior prosperidade agrícola, como no Norte, tal não ocorra), as [conseqüências] trazidas, enfim, numa visão ampla, genérica - como poucas vezes se fez no Paraná, tão carnete de um enriquecimento em sua bibliografia de estudos sociais. A idéia básica da autora é provar que a expansão capitalista no campo, embora não esteja destruindo as formas familiares de produção (ao contrário, estão sendo reproduzidas porque são necessárias aos padrões de acumulação), mas, no caso dos fumeiros, é estimulada pelas multinacionais interessadas na produção da matéria-prima como se fosse uma cultura segura, rentável e capaz de provocar prosperidade aos que a ela se dedicam. Entretanto, através dos quadros estatísticos e levantamento de campo, os números provam que se não fosse o fato dos colonos ainda manterem paralelamente a esta cultura, pequena produção de feijão, milho e mesmo produtos hortigranjeiros, não conseguiriam sobreviver. Com todo apoio técnico recebido (para plantio, construção de estufas aos fumos etc.), financiamentos e seguros (este um aspecto que também tem outras implicações, já que o mesmo vem por parte dos organismos oficiais de crédito), o empobrecimento dos fumeiros é crescente. Entre os inúmeros quadros comparativos levantados, um deles, feito com base no ano agrícola 76/77, calculando as unidades produtivas, o número de membros de cada família que se dedicam ao plantio, colheita do fumo (trabalho, não custa repetir, dos mais cansativos, difíceis, quase em condições subumanas) em relação ao rendimento líquido e ao orçamento familiar - e tomando por base apenas o salário mínimo da época, conclui que em 18 das 19 famílias que se dedicam na região de Irati a este trabalho, todas chegaram ao final do ano com um saldo negativo variável de Cr$ 1.107,20 a Cr$ 62.428,80 - dependendo do número de membros de cada família trabalhando (8quanto mais numerosa, maior o rendimento mas, paradoxalmente, maior o déficit). Ou seja: a assistência técnica, os estímulos, as garantias oferecidas, enfim todos os aspectos aparentemente positivos que estimulam a intensificação da cultura do fumo em minifúndios não apresentam resultados financeiramente compensadores. Ao contrário, verdadeiros proletários rurais, vivendo em condições na maioria das vezes subumanas (como, em vários capítulos, a autora da tese descreva e prova, inclusive com fotos coloridas, feitas por ela e seu marido, o médico Marco Aurélio Cravo), os fumeiros do Paraná - só sobrevivem devido a terem a alimentação amparada ainda na pequena cultura de subsistência, para uso próprio, que mantêm. Sem pretender extrapolar causas e efeitos deste aspecto da realidade rural de uma região do Paraná, em termos agrícolas e sociais num processo de empobrecimento, a professora Veraluz Zicarelli Cravo ofere em sua tese "O Ramal da Fome" mais do que uma simples dissertação para sua carreira universitária. Honesta, corajosamente e, principalmente, levantando dados de forma independente, dá uma contribuição a quem de direito deva se interessar pelos problemas, soluções e equacionamento de nossa agricultura. Ela, como antropóloga, professora e pesquisadora, voltando-se a um tema até hoje ignorado, soube levantar a questão. Lamentável será que seu trabalho não seja editado, para que um maior número de pessoas possa conhecê-lo, integralmente, sentindo toda a sua validade e seriedade.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
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Tablóide
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31/10/1978

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