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Aramis

Um banquete visual a finos paladares

"O meu filme é um melodrama, uma love story. Extravagante". (Peter Greenaway, agosto de 1989, após a primeira exibição de "O Cozinheiro, o Ladrão, sua Esposa e o Amante"). O chocante pode ser belo. Artista plástico, cineasta requintadíssimo, o inglês Greenaway, 48 anos, compõe em "The Cook, the Thief, his Wife and her Lover" (Lido I, 5 sessões, até amanhã) um dos mais belos filmes do cinema contemporâneo com elementos extremamente chocantes. Violência, erotismo, palavrões, vulgaridade, (quase) escatologia, num banquete que torna "A Comilança" (Le Grand Bouffe, 73, de Marco Ferreri) uma peça de museu em comparação. Aparentemente, "The Cook..." seria um filme para apenas quem tivesse estômago forte. Entretanto, é uma obra prima destinada a finos paladares visuais. Não sem razão, Greenaway vem, desde 1966, construindo uma das mais sólidas reputações - na televisão e cinemas da Inglaterra, como um cineasta inovador, que unindo a uma formação de artista plástico, a experiência de 11 anos como editor de cinema e voltando-se a temas fascinantes pode chegar ao requinte de, num projeto ciclópico, transpor numa longa série para a TV BBC a "Divina Comédia" (de Dante), já com seus primeiros 15 cantos realizados - parte deles vistos no último FestRio (Fortaleza, novembro/90), quando "The Cook..." foi a grande sensação, saindo com o Tucano de Ouro de melhor filme e dando a Helen Mirren o prêmio de melhor atriz. Filmes como "O Cozinheiro..." representam portas abertas para múltiplas análises e mostram que, entre todo comercialismo e regras de marketing que lança a outrora sétima arte na vala comum do consumismo, ainda restam momentos de genialidade. Antepondo os figurinos e direção de arte do papa do chique moderno francês, Jean Paul Gaultier a jatos de vômito, a sofisticação do fotógrafo Sacha Vierny ("O Ano Passado em Mariembaud", "Hiroshima, meu Amor"), a imagens de fezes caninas e peixes podres e a belíssima música minimalista do refinadíssimo Michael Nyma, e uma sessão de arrotos, Greenaway realizou um painel de contrastes - mas provando que tudo pode ser belo e significativo. Isto é que faz "O Cozinheiro..." um filme especial, uma obra de extrema beleza tendo um espaço huis clos - dois terços da ação se passa no interior do restaurante "Le Hollandais", que ambientado em Londres, poderia estar em qualquer parte da Europa ou dos Estados Unidos, como diz o próprio Greenaway. Como acentuou, com clareza, o jornalista Nelson Pujol Yamoto, depois de brincar com sexo, jogos e ordenação matemática em "Afogando em Números" (exibido no Ritz, há alguns meses), Greenaway faz malabarismos com sexo, gula e violência - num filme que, apesar de toda a liberalidade de censura, ganhou, no Brasil, a restrição de 18 anos e nos EUA, um "x", marca classificatória normalmente dada a fitas pornô. Mas longe de ser um pornô - apesar das seqüências de sexo entre Georgina (Helen Mirren) e Michael (Alan Howard) serem tórridas - este é um filme de máximo requinte, com uma construção desenvolvida da mesma forma que um grande artista executa um quadro. Emoldurado a um painel que reproduz o "Banquet of the Officer of St. George Civic Guard Company" do pintor holandês Franz Hals (1580-1666) executado em 1616, o imenso salão do restaurante tem as cores vermelhas; o banheiro, com suas peças estilo high tech, é imaculadamente branco - e a cozinha em cores verdes - locais de encontros dos amantes proibidos. Albert Spica (Michael Gambon) é brutal, vulgar e impiedoso ladrão, dono do restaurante luxuoso, onde janta todas as noites, humilhando sua mulher, Georgina, acompanhado de sua gang. Michael (Howard), um tímido contador de uma livraria, judeu, janta sozinho e por ele a mulher do ladrão se apaixona e, desafiadoramente, passam a transarem no banheiro e depois na cozinha, com a cumplicidade do mestre cuca francês Albert (Richard Borhinger). Ao longo de dez noites os amantes continuam a se encontrar, depois do banheiro, num depósito de carnes, entre faisões. Descobertos, o casal foge, nus, num carro de lixo e escondem-se entre milhares de livros. O final é dramático, com sangue e violência - e uma última seqüência canibalesca, impossível de ser esquecida pelo espectador. Há violência. Explícita. Como a garfada que o ladrão dá no rosto da mulher que revela a traição de sua mulher, ou obrigando o belo garoto, voz de soprano, que leve as refeições ao casal de amantes quando eles se refugiam entre livros, a engolir os botões de seu uniforme o o seu próprio umbigo. Aspectos de crueldade no meio de um requinte visual, que o próprio Greenaway, em texto escrito há um ano, admitia como influências do chamado "Teatro Jacobino", mais o chamado "Teatro da Crueldade, Absurdo", citando autores como Alfred Jarry, Artaud e, no campo do cinema, Luiz Bunuel - cineasta que coloca ao lado do francês Alain Resnais, como um de seus favoritos. A fotografia, requintadíssima, de Sacha Vierny, abre e fecha com cortinas - como numa lembrança ao espectador de que o filme oferece apenas uma encenação, "um olhar aberto sobre a crueldade humana" - ainda citando o referencial texto de Greenaway. Esta referência do abrir e fechar de cortinas pode sugerir a abertura e fechamento das portas de "Rastros de Ódio" (The Seachers, 1956) de John Ford (1895-1973), embora, explicitamente, Greenaway refira-se como exemplo do teatro que buscou, tenha sido o de um homônimo do cineasta americano, o inglês John Ford, autor de "Pena que Ela Seja uma Prostituta" (It's Pity She's a Whore). Em muitas seqüências, a câmara de Sacha Vierny se coloca numa posição fixa, para tomadas panorâmicas da mesa central ocupada pelo ladrão e seu séquito - quase numa ironia a Santa Ceia. Evitando o esteticismo vazio - embora virtuosamente belíssimo no aproveitamento da direção de arte de Jean Paul Gaultier, as imagens deste filme são perfeitas. O mesmo se pode dizer de sua trilha sonora, a décima que realiza para filmes de Greenaway, de Michael Nyma, 46 anos completados dia 23 de março. Desde 1977 regente de sua própria orquestra e considerado um dos mais notáveis compositores europeus, requisitadíssimo não só para criação de filmes, peças, trabalhos em ópera e ballet, mas também concertos. A trilha sonora de "The Cook..." é uma verdadeira sinfonia, acompanhando em suas nuances os momentos dramáticos, as fortes emoções que o filme traz - numa integração perfeita, como há muito não se via. Com um elenco desconhecido para o público brasileiro - mas de atores e atrizes respeitados na Inglaterra, Peter Greenaway pode compor um filme com toques em que o teatro da crueldade é, visualmente, absorvido pelos recursos do cinema - graças a montagem de John Wilson, vindo também da televisão. Co-produção franco-inglesa, mas com participação majoritária do holandês Kess Kasander, "O Cozinheiro..." teve sua primeira exibição mundial em Veneza, no ano passado, mas só competindo no FestRio, no qual foi o grande destaque. Com sua premiação, a Art comprou os direitos de exibição no Brasil (inclusive para edição em vídeo), mas é de se lamentar que seu lançamento em Curitiba ocorra de forma tão obscura. Obra aberta para muitas interpretações e análises mais profundas, "O Cozinheiro, o Ladrão, sua Mulher e o Amante" é absolutamente imperdível.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
24
22/08/1990

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