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Aramis

Um surpreendente fruto na colheita inesperada

A II Guerra Mundial, o nazismo, a perseguição aos judeus pode ainda resultar em um filme atraente? 43 anos depois de encerrado o conflito, a discussão do nazismo pode ter novos enfoques? Ou ao menos ângulos capazes de justificarem revisões? Pode. E a prova é "Amarga Colheita" (cine Luz, 5 sessões), que estreou obscuramente, sem qualquer promoção, a tal ponto que nem o próprio Chico Alves ao programar este título distribuído no Brasil pela F. J. Lucas dispunha de qualquer material referencial. Até o cartaz é o importado da Alemanha e as fotos são tão raras que nem foram distribuídas à imprensa. Mas isto não importa: "Bitter Ernte" é uma surpresa em termos de cinema, com um vigor de linguagem e imagens que justifica a atenção por quem aprecia filmes que tocam em problemas que, passadas quatro décadas, permanecem merecedores de reflexão. E tem mais: embora a ação se encontre num microespaço, durante os anos de 1944/45, o roteiro de Paul Hengge e Agniezka Hilland a partir do romance de von Hermann H. Field e Stanislaw Mierzenski traz, em seu conteúdo, questões mais amplas - como o racismo, a religião, o poder, a bondade e a canalhice de todos nós - dependendo da situação financeira. Em alguns momentos, "Amarga Colheita" pode lembrar personagens e cenários da mastodôntica superprodução "Heimat - Terra Natal", RFA, 1980/84, de Edgar Reitz. Aquele filme de 15 horas, 24 minutos e 10 segundos, sobre uma aldeia alemã entre 1919/1982, acompanhando a vida de várias famílias, trazia elementos do comportamento do povo alemão durante o III Reich. O romance da dupla Field/Mierzenski, sobre o qual a cineasta Agnieska Holland se debruçou para este "Amarga Colheita" também é um corte na vida de uma pequena aldeia alemã e o reflexo da estupidez nazista sobre alguns de seus habitantes, estruturalmente, mesmo sendo um romance (por certo volumoso no original), a narrativa de "Bitter Ernte" tem muito de uma linguagem teatral, lembrando no encontro que se estabelece entre o alemão de meia idade e a jovem judia, que ele protege e esconde em sua casa, um pouco daquela relação de amor-ódio que caracteriza o comportamento do jovem solitário e neurótico (Terence Stamp) que aprisiona no porão de sua mansão a jovem por quem nutria uma paixão platônica (Samantha Eggar), num dos melhores filmes de William Wyller - "O Colecionador" (The Collector, 1965), partindo do romance de John Fowles (editado no Brasil originalmente pela Civilização Brasileira). A relação entre o alemão que retornou à sua propriedade, amargurado e envelhecido, numa solidão que a vida religiosa lhe marcou ainda mais profundamente, e a judia fugitiva de um trem, do qual saltou com o marido e a filha menor, tem um crescimento dramático. O esfacelamento da família judia - na fuga a caminho do campo de concentração (um dado que também pode remeter a um dos episódios de "Retratos da Vida/Les Uns et les Autres", de Claude Lelouche), o encontro com um homem amargurado - mas que tem despertado amor pela criatura que auxilia e protege são condicionantes que vão sendo trabalhadas admiravelmente. Numa linguagem objetiva, que não se perde em nenhum momento, os diálogos (e algumas situações) trazem à discussão aspectos mais profundos do que apenas uma crônica de guerra. Especialmente as discussões entre o alemão e Rosa, a judia, em torno de religiões - Cristianismo x Judaísmo - e que termina inclusive na mútua agressão física, para a seqüência seguinte, na reconciliação, ela, sorrindo, a dizer: - Que absurdo a discussão pela fé numa situação como a nossa! No World Film Festival, em Montreal, há 3 anos, a imagem internacional conferiu um prêmio especial a interpretação de Armin Mueller Stahl. Realmente, no personagem central - um homem inseguro em seus sentimentos, com frustração pelo passado de pobreza e uma vocação religiosa interrompida, debatendo-se entre uma posição antinazista mas aceitando a imposição política, constrói um personagem magnífico. Não é herói, não é um galã mas também não é um vilão: é um ser humano com toda a dimensão possível. Também admirável a atuação de Elizabeth Trissena como Rosa. Uma beleza sofrida, mantendo uma dignidade que nem a perseguição e a humilhação não lhe retiram, dá ao personagem uma sensível empatia. Também os personagens coadjuvantes são muito bem desenvolvidos, com ótimos intérpretes - todos, naturalmente desconhecidos do público brasileiro: Wojciech Pszoniak, Gert Baltus, Hans Beerhenke, Margrit Capistensen, Isa Haller, Anita Hoffer, Kathe Jaenicke e Kurt Raab. Sente-se que o filme original sofreu alguns cortes (inclusive nas poucas fotos em exibição no hall do cine Luz, há duas cenas que não aparecem no filme), o que pode ter retirado outros elementos importantes de seu desenvolvimento. Outro ponto importante: a trilha sonora de Joeg Straburfer. Sem atrativos maiores ao público convencional, "Bitter Ernte" é um filme especial, digno e honesto, revelando mais uma talentosa cineasta alemã. LEGENDA FOTO - "Colheita Amarga", um filme surpreendente: Armin Muller Stahl e Elizabeth Trissena em interpretações marcantes. Em exibição no cine Luz.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
19/03/1988

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