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Aramis

Uma fonte floresce no bolero da vida

" Começaria tudo vez Se preciso fosse, meu amor A chama em meu peito ainda queim, Saiba, Nada foi em vão ! " ( Luiz Gonzaga Jr. 1976 ) A emoção de reencontrar uma peça de sentimentos. Limpa, agil, bem estruturada e bem montada. Eis " Quando o Coração Floresce " ( Auditório Salvador de Ferrante, até domingo, 21 horas ), um espetátulo romântico e mágico que chega a Curitiba após estrear ( novembro /84 ) em Brasilia, dois meses de casas lotadas em São Paulo e bem sucedidas apresentações em Porto Alegre e Florianópolis. O texto do russo Aleksei Nikolaievich Arbuzov ( Moscou, 26 de maio de 1908 ) pode comportar diferentes leituras e visões. Felizmente, num trabalho de equipe, o diretor Paulo Autran e os intérpretes produtores, Eva Wilma e Carlos Zara , preferiam, antes de tudo, uma ótica de sentimentos . O resultado é um espetáculo que, escapando do melodrámatico piegas, tem a sinceridade das coisas espontâneas e a empatia da vida, tornando-se , asssim , universal. Deixa de ser circunscrita a um determinado tempo ( 1958 ) e lugar ( Riga, Capital da Latônia , uma das repúblicas soviéticas socialistas ) para tocar o espectador sensivel de qualquer latitude. " Staramodnaya Komiya " ( Uma Comédia à Moda Antiga ), titulo que Arbuzov deu a esse texto, escrito há dez anos passados e que se chamou " Old World " ( " Velho Mundo " ) , na montagem inglesa ( com Anthony Quayle e Dame Peggy Ashcroft - Oscar de melhor coadjuvante / 85 por " Passagem para India " ), e que , na adaptação francesa ( com Edwige Feuillérie / Guy Tréjan ), foi denominada " Le Bateau pour Lipaia ". No Brasil, encontrou-se um titulo muito feliz e apropriado. " Quando o Coração Floresce ", que nos remete, de imediato, a imagem do enternecedor filme que o inglês David Lean ( o mesmo de " Passagem para a India " ) realizou há 30 anos : " Summertime ", da peça " The Time of the Cukoo " de Arthur Laurents, com a outonal história de amor da bibliotecária americana e cinqüentona Jane Hodson ( Katherine Hepburn ) que nas férias de verão em Veneza, apaixona-se pelo elegante antiquário Renato Di Rossi ( Rossano Brazi ). Curiosamente, a peça de Arbuzov tem algo em comum com " Summertime ", apesar de distância entre seu texto e a peça de Laurents : a vontade que têm os solitários de uma segunda ( e última ) chance de encontrar a felecidade. Lidva Vassilievna Zherber, a Lidiuschka, ao procurar uma clinica de repouso na ecológica cidade de Rega, ali encontra um médico amargurado, introspectivo e frio - Rodion Nicolaievitch. Do relacionamento dos dois, no início difícil e conflitante, constrói -se uma ponte sobre as cicatrizes de dores individuais - ela com tristeza pela morte do único filho na guerra, o abandono do marido - mas ainda procurando entender a maravilha de cada novo alvorecer, do nascer do sol, de respirar a fragância das flores; ele, carregando a ausênsia da esposa, também médica, morta em 1944, no final da II Guerra. Seres solidários e amargurados, que se refugiam em seus mundos, mas que tal como os porcos-espinhos, que, no rigor do inverno europeu, necessitam se aproximar para o aquecimento que evite a morte pelo congelamento, também têm de ser suficiente cuidadosos para não se machucarem com seus espinhos. E os espinhos dálma, de Lidiuschka e Nicolatevich, levam a volteios, andanças verbais e sentimentais no labirintico caminho para uma ponte de união. O adimirável, nessa montagem, é a precisão com que o Paulo Autran, 62 anos, 35 anos de teatro - em seu melhor trabalho como diretor - soube conseguir, cada momento, axiliiado não só pelas esplêndidas interpretações de Eva e Zara, mas por uma inteligente cenografia criada por Felippe Cresceni, que utiliza as potencialidades crom'ticas de slides formando poéticos cenários carvalhos, velhas ruas de Raga ou simples imagem de uma janela entre a neblina da noite. Todo o encantamento de um brief encounter entre duas pessoas já a caminho do crepúsculo da vida ( nas montagens européias, os personagens estavam na faixa dos 60 anos, reduzidos aqui para os 50 ), encontra toda uma imensa carga de sentimentos num adulto romantismo. E, se isso, de um lado, poderia limitar a impatia apenas uma platéia quarentona, funciona também ( sintomática e surpreendentemente ) com o público jovem que, afinal , assimidamente, entende-se ( e sensibila-se ) com uma love story que poderia parecer caretice a quem nasceu nos anos 60. As dificuldades de uma entrega amorosa - com idas e vindas, volteios, medos e indecisões - quase sugerindo imagens de " Um Homem, Uma Mulher " ( 1966, de Claude Lelouch ), como tão bem lembrou o crítico paulista, jefferson Del Rios, fazem, entretanto, que se a visão amorosa do texto de Arbuzov tenha uma escalada emocional que possibilita que a veja, a cada novo momento, com um delicioso suspense amoroso, torcendo o espectador para um indispensável happy end. Elementos de grande posesia e magia, que estimulam a imaginação do espectaador, fluem do texto para o palco : a sugestão do mundo encantado do circo, ao qual Lidiuschka pertence, seja como ex-partner do homem que a abandonou ou na humildade ( feliz ) de seu trabalho de bilheteria - um envolvimento enternecedor, quase felliniano e no qual colabora, apropriadamente, a música de Carlinhos Lyra, em momento de inspiração digno de Nino Rotta. Mas não é só a mágica do circo ( simbolicamente também, muitos de forma física no trapézio ), mas também, muitos diálogo transpõem a imaginação do espectador e outras imagens : chuvas nos dias de infância, com as poças d'água, recordatas por Lidiuschka ; a vontade de atravessar de barco para o lado de lá " na qual a não designação geográfica do " outro lado " deixa o imaginário mais liberto do que seria a simples niminação de uma ilha ou cidade ( como aconteceu incluisive no titulo da versão francesa ). Fasinante com alguns objetos - especificamente, o guarda-chuvas - ajudaram a compor imagens tão belas, em algumas cenas, sugerindo um traço de união, o afeto, dos personagens. Se o trapézio, no lado direito do palco, é um simbolo do dificil salto na solidão de cada um, o guarda-chuva funciona como o elo protetor dos personagens - e na colocação desse adereço podem ficar sugestões que vão de " Cantando na Chuva " ( Singni'in the rain , 1953, de Stanley Donem ) a " Os Guarda-Chuvas do Amor " ( Les Paraplues de Cherbourg, 1964, de Jacques Demy / Michel Langrand ), Aliás a trilha sonora com músicas incidenciais ( especialmente russas ) e duas belíssimas canções de Carlinhos Lyra - chegam a sugerir o ritmo de um musical outonal proposto inclusive naquele fantastico flash back do doce pássaro da juventude quando Lidiuschka e Nicolaievitch rememoram , com o son de um charleston, uma dança que, pela comunicabilidade, arrancou aplausos em cena aberta do público presente na estréia, quarta-feira, dia 10. Dificilmente Eva Wilma, 51 anos, 26 peças em 31 anos de carreira, encontraria um papel mais perfeito. Da comédia ao drama, ela é a atriz emoção, nas duas horas em que permanece em cena, compondo uma interpretação perfeita, na qual colocou todo seu punch, sua sensibilidade e garra de atriz que tem trilhado longos caminhos pelo teatro, televisão e cinema - infelizmente nem sempre aproveitada em todo seu potencial . igualmente seguro, fazendo um trabalho que resgata aos palcos, após anos de televisão, Carlos Zara ( Antonio Carlos Zaranettini, 54 anos ) tem o denso e amargurado Rodion Nicolaievitch condições de fazer um personagem eclodir do mundo cinzento ao qual parecia condenado para um florescimento amoroso numa nova ( última ? ) oportunidade de reviver. Assim, o homem amargurado e desiludido, ranzinza, dos primeiros quadros, se descobre frente ao frescor e otimismo de Lidiuschka - como /a ponte que necessitava para tal como poema canção de Gonzaguinha, começar de novo. E então eu cantaria a noite inteira Como já cantei / Eu cantarei As coisas todas / Que já tive / Tenho, e sei Um dia terei. Escapando do melodramatismo de um tango, " Quando o Coração Florese " tem o saudável romantismo de um bolero, com o ritimo up e otimista. O tratamento de comédia, mas sem dispensar as potencialidade dramáticas e mesmo levemente políticas, incluindo informações precisas ( os 20 milhões de russos que morreram durante a II Guerra Mundial, o fracasso dos planos econômicos do regime stalinista ) fazem com que essa peça preencha um vazio do teatro comteporâneo que tem sido visto em mossos palcos. De certa forma, a exatidão com que Paulo Autran dirigiu essa peça - antes de mergulhar no desafio da dupla interpretação / montagem de "Tartufo " ( Moliérie ) e " Feliz Páscoa " ( Jean Piret ), atualmente em cartaz no Teatro Maria Della Costa, em São Paulo, marca sua carreira. E confirma a necessidade de um espetáculo ser desenvolvido com dignidade e profissionalismo. As muitas horas de ensaios com Eva e Carlos Zara,na busca do máximo de cada personagem, a tradução/ adaptada do texto ( creditada a Marisa Murray, mas claramente desenvolvida, em equipe, pelos intérpretes diretores ), a feliz cenografia de Felippe Crescenti, a correta coreografia de Leila Deheinzelin, as " rotaneanas " músicas de Carlos Lyra e a engenhosa iluminação criada por Renato Pagliaro ( corretamente mantida na montagem curitibana ), são fatores que fazem de " Quando o Coração Floresce " um espetáculo da maior dignidade e entre as melhores encenações aplaudidas no Teatro Guaira. Depois da emoção de " Feliz Ano Velho " há menos de um mês, temos, agora , uma peça que pode ser resumida ( como bem diz Zara ) numa palavra : " sentimento ". Emoções que fazem florescer corações, numa era de violência, solidão e distanciamento de pessoas, mas que, tal como Lidiuschka e Nicolaievitch, busquem aquela ponte aparentemente inexistente, mas que pode ser firme e segura, na distância dos que ainda acreditam no amor. E a alegria de poder olhar pra trás E ver que voltaria com você De novo viver nesse imanso salão Vamos nós Veja meu bem A orquestra nos espera Por favor Mais uma vez Recomeçar. LEGENDA DA FOTO - Um bolero de esperança, na outonal dança da vida : Eva Wilma e Carlos Zara, no espetáculo - sentimento " Quando o Coração Floresce " ( Teatro Gauíra , até Domingo ).
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
12/04/1985

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