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Aramis

Uma leitura visual da saga de Jubiabá

"O bom filme deve ser igual à música. Um supracódigo. O importante é passar a emoção, ser bonito, ter um olhar original". (Nelson Pereira dos Santos em entrevista à jornalista Helena Salem, durante as filmagens de "Jubiabá"). Ao se lançar nas filmagens de "Jubiabá", em 5 de dezembro de 1985, Nelson Pereira dos Santos vinha do seu maior êxito: a superprodução "Memórias do Cárcere", do livro de Graciliano Ramos (18992-1953) levado aos mais importantes festivais de cinema do mundo, aplausos da crítica e boa carreira comercial. Enfim, uma obra de maturidade, emocionante, brasileiríssima e sobretudo política. Portanto, as cobranças eram esperadas. Todos queriam outro filme igual... Prevendo isto, há 3 anos, Nelson Pereira dos Santos já dizia: - E daí? Não faço um filme em cima do outro. Faço um ao lado do outro. Não é para superar o anterior, é um outro espaço, um outro campo de observação, de interesse, de carinho, de amor. Vou fazer "Jubiabá" no maior astral, descontraído, exatamente por ter feito o Memórias. Poderei exercer o meu prazer estético livremente, sem ter que dar explicações a ninguém. É importante recordar estas colocações que o cineasta fez a Helena Salem - "O Sonho Possível do Cinema Brasileiro" (Editora Nova Fronteira, 387 páginas, 1987) para entender melhor seu último longa-metragem (em exibição no cine Ritz, 5 sessões). Massacrado pela crítica mais radical desde suas primeiras projeções, ainda em 1986, com pouco público, "Jubiabá" é, entretanto, um filme digno, honesto e importante. Para quem já havia, 10 anos antes (1977) realizado a melhor adaptação de Jorge Amado ao cinema ("Tenda dos Milagres", do romance publicado em 1972), "Jubiabá" pode parecer, a primeira vista, um filme menor. Em "Tenda dos Milagres" (no ano passado adaptado para uma minissérie da Globo), a temática era a mesma: as relações inter-raciais. A presença vigorosa do intelectual baiano Pedro Arcanjo - e a partir de sua morte, uma investigação (à maneira de "Cidadão Kane"), que vai dando ao espectador informações sobre a sua participação na vida baiana, focalizando o problema da religião popular oprimida, no caso o candomblé, da marginalização dos valores culturais do povo, discutindo a questão da miscigenação e do racismo no Brasil. Em "Tenda dos Milagres", a síntese foi possível, apesar de muitos personagens importantes, o roteiro se desenvolvia de forma quase didática. Em "Jubiabá", um painel bem mais amplo, a partir do denso romance de 310 páginas, que Jorge Amado publicou no vigor de seus 23 anos, em 1935, as dificuldades foram maiores. Assim o painel de toda uma vida - e sobretudo de um grande amor entre uma jovem branca e loura, Lindinalva (Françoise Goussard) e o negro Antônio Balduíno (Charles Baiano), entremeados de toda uma carga de intolerância racial, conflitos sociais e políticos, sofreu elipses que, ao espectador menos atento, dificultam até o entendimento da história. Tratando-se também de uma co-produção com a França - com parte do elenco de artistas daquele país, também as dificuldades aumentaram. Embora evitando as imagens de cartão postal - e para isso, a "Jubiabá" não pode deixar de ter um approach internacional, para chegar a platéias aos quais o Brasil é visto como sinônimo de macumba e do samba. A figura do personagem-título - uma interpretação discreta de Grande Otelo não chega a ser trabalhada, perdendo-se, assim, até a motivação do símbolo-título em torno do qual gira toda uma história de amor, lutas, provocações, sofrimentos e alegrias que se estende por várias décadas. A concepção de um filme para televisão, com duração maior, reduzindo-se depois para a metragem normal, fez com que mesmo com toda sua experiência na moviola, Nelson Pereira dos Santos, 59 anos - 38 de cinema, tivesse encontrado grandes dificuldades para conseguir um resultado final. É de se imaginar a beleza que o filme teria se pudesse ser realizado com ao menos 40% a mais de metragem, detalhando a saga do negro Antônio Balduíno - sua passagem pelo meio rural (visto apenas numa seqüência), sua trajetória como lutador de boxe e depois do lírico universo circense, até chegar a conscientização político-social no final - com imagens repletas de esperança e que, de certa maneira, mostram a ideologia de Nelson Pereira dos Santos, ativo participante do PC em sua juventude. Também a personagem Lindalva, branca e etérea, perde muito na contenção das seqüências - mas a love story fica com um belo sentimento, no amor platônico, nunca consumado. Gilberto Gil criou uma trilha sonora belíssima (o mesmo aliás também conseguiu em "Um Trem para as Estrelas", de Cacá Diegues), utilizando, especialmente, o admirável Batatinha, compositor e cantor baiano - uma espécie de Carlota de Salvador. Um filme de méritos maiores que suas falhas, "Jubiabá" merece ser visto com olhos bem abertos, aprendendo-se a entender o Brasil de Amado, que tem nas imagens de Nelson uma ótima transposição. Diferente das "Memórias do Cárcere" de Graciliano - mas identificado a toda uma obra política e esteticamente honesta (hoje a disposição do público, graças ao lançamento dos filmes em vídeo, pela Manchete), "Jubiabá" encerra com a câmera fazendo uma tomada do morro, a cidade se descortinando o futuro, a vida - lembrando mesmo "Rio, 40 Graus" (1954), o primeiro longa de Nelson, marco da renovação do Cinema Brasileiro. Na seqüência final, após o discurso de Balbino no sindicato, as seqüências se alternam com o candomblé de Jubiabá. E o velho sábio, se dirigindo a Baldo, diz uma frase que fica na retina do espectador, para ser pensada com vagar: - Os ricos secaram os olhos da bondade. Mas eles podem, a hora que quiser, secar os olhos da ruindade. LEGENDA FOTO - Nelson Pereira dos Santos: depois de Graciliano Ramos, as cobranças em torno da adaptação de um romance de Jorge Amado.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
04/03/1988

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