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Aramis

Brasil, tortura e mulheres em duas visões de cineastas

Não é apenas um espaço cronológico (1964-1968-1972) que separa "1º de Abril - Brasil" (cine Ritz, 5 sessões) e "Que bom te ver viva" (em competição, dia 24, representando o Brasil no FestRio-Fortaleza; lançamento dia 7, cine Ritz), ambos realizados por mulheres e que abordam a ditadura militar. Cineastas estreantes no longa metragem, Maria Letícia ("1º de abril") e Lúcia Murat ("Que bom...") fazem apreciações diferentes de um período trágico da vida brasileira - no primeiro com uma tentativa de humor; o segundo com a sinceridade/seriedade mais pungente já colocada nas telas. Assim como o Vietnã está longe de ser um tema esgotado em suas expiações visuais - e para tanto, haja vista o número cada vez maior de filmes confessionais, duros e críticos que tem sido realizados a respeito - a longa noite de arbítrio, intolerância, violências e torturas que a direita provocou no Brasil a partir de 1964 pode - e deve - merecer ainda muitas análises. E isto é que, cada uma a sua maneira, Letícia e Lúcia fazem em seus filmes. xxx Em "1º de abril - Brasil", o real (utilização de cinejornais da época) entremeia a ficção (adaptação da peça de Leilah Assunpção, "Vejo um vulto na janela: me acudam que sou donzela") para fazer uma aproximação da época aos personagens criados pela dramaturga para enfocar os dias que antecederam ao golpe de 1º de abril, visto ingenuamente através de moradores e a dona de uma casa de cômodos - e os pouquíssimos personagens masculinos - que praticamente não têm falas. Em "Que bom te ver viva", a ficção (Irene Ravache, numa interpretação maravilhosa, que lhe valeu o Candango de melhor atriz no Festival de Brasília e poderá ganhar o Tucano de Prata, de melhor atriz do FestRio-Fortaleza) é uma espécie de alter-ego da própria diretora, Lúcia Murat, 42 anos, jornalista, ex-integrante do Val-Palmares, e que foi presa, torturada e viveu no exílio. Embora escrito como uma personagem ficcional - com um monólogo que Irene Ravache diz (e que perfeição é a sua atuação, um momento que poucas vezes se viu no cinema!), costuram o depoimento das oito presas políticas, todas vítimas de torturas, fantásticos em sua sinceridade, fazendo de "Que bom te ver viva" mais do que um documentário, um filme-denúncia necessário de ser (re)visto e muito discutido nesta hora em que, pela primeira vez em três décadas, os brasileiros elegem o Presidente da República. Seria até injusto comparar o filme de Maria Letícia (premiado como melhor diretora no Festival Texaco de Cinema de Curitiba), e que valeu os prêmios de melhor atriz (Rosa Maria Murtinho) e montagem (Marília Alvim), em Gramado, com o de Lúcia Murat - melhor filme de Brasília (Júri, voto popular e crítica), mais atriz (Irene Ravache) e montagem (Vera Freire), além do fotógrafo Walter de Carvalho também ter recebido um prêmio especial. Lançado há um mês no Rio - e há três semanas em São Paulo - conseguiu (quase) uma unanimidade da crítica e apesar de abordar um tema doloroso, com depoimentos pungentes de mulheres que sofreram a violência física devido sua militâncias políticas, está tendo um bom público - e sua seleção (ao lado de "Minas-Texas", de Carlos Alberto Prates) para representar o Brasil na mostra competitiva em Fortaleza abre as portas do mundo para sua exibição. Há 60 dias, o filme de Lúcia deixou de ser mostrado no Festival de Nova York porque a cópia não chegou a tempo - em mais uma daquelas confusões que já prejudicaram tantos filmes brasileiros em mostras internacionais. xxx Embora focando um assunto nacional - o depoimento de mulheres que conheceu em seus anos de atuação política, como integrante do Val-Palmares, companheira de prisão de quatro das 8 depoentes - o filme de Lúcia Murat tem uma dimensão mundial. A emoção das oito mulheres que gravaram longos depoimentos (em vídeo, transcritos depois para o negativo em 35mm), num total de 12 horas (reduzidos na versão final para 40 minutos), e na qual falam, com sinceridade, de suas experiências antes, durante e após a participação política, tem uma honestidade tão grande quanto as entrevistas que o francês Claude Lanzmann conseguiu das dezenas de entrevistadas (entre vítimas algozes e testemunhas) do genocídio judaico em "Shoah" (só que ali foram 350 horas de filmagem, reduzidas para 9h30min, nas duas partes, exibidas durante um mês no cine Groff). Cinco das oito depoentes foram companheiras de prisão da própria Lúcia: Jesse Jane, 37 anos, presa em 1970 durante tentativa de seqüestro de um avião; Maria Luiza Garcia Rosa, 37, que começou fazendo política estudantil; Regina Toscano, 40, epiléptica e grávida, torturada e presa em 1970; Rosalina Santa Cruz, 43 anos, presa e torturada junto com o marido. Também foi companheira de presídio de Lúcia a depoente que preferiu o anonimato (após ter cumprido quatro anos e meio de clandestinidade e quatro de cadeia, seguiu um caminho místico, sendo hoje reclusa num convento budista). Sem revanchismo, embora com amargura em alguns momentos dos depoimentos, as mulheres que sofreram a violência da tortura parecem, no final, fazer um hino à vida, especialmente graças a maternidade - pois seis delas tem filhos, alguns nascidos na prisão, como os de Jesse Jane e Criméia Schmidt de Almeida. Justamente pela forma com que encararam seus depoimentos - Algumas delas não deixando de chorar durante as filmagens (o fotógrafo Walter de Carvalho sugeriu o uso do vídeo, porque possibilitou o registro integral dos depoimentos, num material extenso que agora será doado por Lúcia para o arquivo da USP-SP), justamente por lembrarem os momentos mais sofridos em suas vidas. Deste material imenso, a montadora Vera Freire, uma das melhores profissionais do país, soube utilizar com perfeição aquelas frases mais ajustadas, intercaladas com o material filmado com Irene Ravache e também imagens de arquivo (recortes de jornais da época), além de algumas seqüências que mostram as depoentes em seu dia - além de depoimentos de familiares. O congelamento das imagens é perfeito, com uma função dramática, fazendo do trabalho de Vera um ponto de inovação inclusive no ritmo dramático - e que tornou merecidíssima sua premiação em Brasília.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
21/11/1989

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