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Aramis

Mulatas e Alke, sem preconceitos

É hora de retirar os (falsos) preconceitos elitistas e cair na gandaia. Ou seja, apreciar dois espetáculos de raízes populares, comerciais, << assumidos >> em sua simplicidade, sujeitos a chuvas e trovoadas, mas brasileiríssimos. No grande auditório do Guaíra, somente hoje, às 21h30min, << Gandaia 80 >>, título infeliz para um espetáculo repleto de plumas, cores e animação - e que tem não só as 22 esculturais >> mulatas que não estão no mapa >>, mas, especialmente, a presença de uma das mais belas vozes deste país: Jamelão. No pequeno auditório do Guaíra, felizmente em temporada mais longa (até 10 de agosto, 21h30min), << Rio de Cabo e Rabo >>, de Gugu Olimecha. Musicalmente, o maior mérito de Oswaldo Sargentelli, 57 anos, é ser sobrinho de um dos mais importantes compositores populares: Lamartine (de Azeredo) Babo (Rio de Janeiro, 10/1/1904-16/6/1963). Em compensação, se não herdou o talento de compositor do tio. Sargentelli soube industrializar o esquema samba-mulher bonita-animação e há 11 anos vem apresentando shows que encantam turistas e lhe permitiram uma independência econômica. Após 6 anos de contrato com Ricardo Amaral, adquiriu sua própria casa - o << Oba-Oba>, já com filial em São Paulo. Excursões pelos Estados - e em 1981, apresentação em Los Angeles - ajudaram torná-lo um homem rico. Alegre,, simpático, Sargentelli tem um esquema de fácil comunicação: seus shows não têm o requinte que caracterizava, por exemplo, as produções de Carlos Machado, nos bons tempos em que o dinheiro corria fácil na noite carioca. Mas tem o mérito de empregar 19 músicos - oito dos quais percussionistas, reunir belíssimas mulatas (e talentosas algumas), dar chance a novos cantores - Walpeco, Rosa, entre outros - além de proporcionar que se ouça, pela primeira vez num teatro de Curitiba, este intérprete tão importante, quanto injustamente esquecido: Jamelão, no registro civil José Bispo Clementino dos Santos, carioca de 12 de maio de 1913, do bairro de São Cristóvão, de origens humildes e ligados desde a infância ao G.R. Escola de Samba Estação Primeira da Mangueira. Quando tinha 10 anos ganhou um cavaquinho, aos 15 conheceu Cartola e Carlos Cachaça e nos anos 30 já começou a cantar em gafieiras. Sua voz << com gosto do Brasil >>, como nos dizia, há 4 anos, em sua última entrevista, a cantora Maysa Monjardim (1936-1977) apontando-o como o cantor que mais admirava, criou inúmeros sucessos, especialmente os sambas-canções de Lupiscínio Rodrigues (1914-1974), que foi um de seus melhores amigos, além do << Matriz e Filial >>, do paulista Lúcio Cardim - mas que por ter a mesma temática da obra do gaúcho Lupe, muitos atribuem aquele compositor. Nos Estados Unidos ou Europa, um cantor com a obra de Jamelão - mais de 30 elepês, centenas de 78 rpm - seria um homem rico e independente. Entretanto ele é investigador de polícia da Secretaria da Segurança Pública do Rio de Janeiro, o que o fez restringir sua carreira mais naquela cidade, sendo raras sua presença entre nós. Mas quem não o admira interpretando << Folha Morta >> (Ari Barroso, 1954), ou seu > (Enéias Brito e Aluisio Augusto Costa, 1956), para não falar da imensa obra de Lupiscínio... Embora com uma participação relativamente pequena, só Jamelão já justificaria que os fãs da boa MPB assistam a << Gandaia 80 >>. Entretanto, Sargentelli conseguiu dar ritmo e alegria ao espetáculo - mas que precisa ser visto sem preconceitos. É um show propositalmente feito para consumo de grande massa, de uma faixa que normalmente não é atraída por teatro - mas que cresce a cada dia, na chamada propaganda << boca-a-boca >>. Isto, aliás, é que garantiria ao empresário Avelar Amorim, o corajoso produtor da temporada curitibana, o ressarcimento de elevado investimento feito: com quase 100 pessoas, despesas só de hotel beirando os Cr$ 300 mil, o bom Avelar (um dos empresários artísticos locais mais bem relacionados e organizados) só na estréia teve prejuízo acima dos Cr$ 150 mil. Entretanto, o público cresceria se o espetáculo continuasse em cartaz. Sargentelli conta piadas - algumas bem agressivas, entoa canções e divide, com agilidade, os diferentes números. Para a platéia masculina, chauvinista, as mulatas, em sua plástica, perfeita, música além de Jamelão, há a voz afinada de Rosa e a presença de instrumentistas que mostram como é bom ouvir uma orquestra. O que está se tornando cada vez mais raro... *** No ano passado, Maria Helena Kuhner, uma das mais eficientes pesquisadoras do teatro brasileiro, ligada ao SNT e à Fundação Brasileira TV-Educativa, publicou um livro onde mostra as raízes populares e brasileiras do teatro-de-revista. Seu trabalho veio provar o valor de um gênero tipicamente brasileiro, com origem no final do século passado, injustamente marginalizado pelas falsas elites intelectuais. Apesar dos modismos, da censura, da concorrência do cinema e da televisão, o teatro-de-revista resiste em certas casas do Rio e São Paulo. Antes do advento do rádio/tv, era nos teatros de revistas que os compositores lançavam suas músicas - e muitos sucessos carnavalescos assim nasceram, como conta Edgar de Alencar em sua história do Carnaval carioca. A censura após 1964 fez o teatro de revista esmorecer em seu aspecto crítico - que resistia inclusive no Estado Novo, quando, consta Getúlio Vargas, << liberava >> piadas a seu respeito, nos espetáculos deste gênero, sabendo capitalizar a popularidade que as mesmas traziam. Infelizmente, nos anos mais duros da repressão - 1968-77, faltou aos donos do poder este espírito de humor e o teatro de revista perdeu sua força crítica, mas nem por isso morreu. Apenas ficou com nível mais baixo. Vez por outra, intelectuais com uma aparente sofisticação tentaram ingressar no ramo, inclusive na experiência de << Tem Bananas na Banda >>, com Leila Diniz no auge de sua fama, pouco antes de sua trágica morte, num acidente de aviação. No ano passado, além da publicação do livro de Maria Helena Kuhener, dois outros fatores importantes ocorreram; a realização de um filme sobre os tempos dourados do teatro de revista, rodado nos estúdios da Cinedia, e a decisão de um premiado diretor e autor nordestino, Luís Mendonça, em montar uma revista crítica: << Rio de Cabo a Rabo >>. Estreando em fins de 1979, no << Rival >> (tradicional teatro de revista no centro do Rio de Janeiro), está peça escrita por Gugu Olimecha, veteraníssimo do gênero, permaneceu nove meses com casa lotada. Djenane Machado, principal nome do elenco, foi substituída por Elke Maravilha, mas o espetáculo nada sofreu - ao contrário , segundo alguns críticos, até ganhou. Identificada erroneamente como uma atriz medíocre - a imagem da << loira burra >>, pelo desgaste em sua participação em júris de televisão e visual espalhafatoso - Elke Maravilha é, entretanto, uma mulher inteligente, atriz de recursos, a tal ponto que o rigoroso Alex Viany e convocou para o papel central do filme que marca seu retorno ao cinema, << A Noiva da Cidade >>, roteiro inspirado em uma idéia de Humberto Mauro, rodado em Cataguazes, MG, já concluído, mas até agora inédito no Brasil. << Rio de Cabo a Rabo >> é uma revista << assumida >>. No Teatro Rival foi apresentado em um espaço apropriado: mesas e cadeiras, na linha de um café-concerto, com o qual o prefeito Jaime Lerner tanto sonha em ver implantado em Curitiba. Piadas de efeitos direto, muitas que pelo seu regionalismo carioca, se perdem numa temporada fora daquela cidade, o espetáculo reúne, entretanto um elenco esforçado, parte musical bem construída e executada por Nelson Melin, coreografia de Renato Castelo, cenários e figurinos de Laerte Thomé. Um esquema tradicional, ao qual Luís Mendonça, mais um pernambucano que deu certo no teatro brasileiro, soube respeitar e do qual não deve ter se arrependido, haja vista que tanto os críticos elogiaram a revista, como o público foi constante na longa temporada. Entenda-se, por favor, que tanto o << Gandaia 80 >> - hoje em sua última apresentação, vomo << Rio de Cabo a Rabo >> - que estreou ontem, devem ser vistos como espetáculos populares, comerciais mesmo, mas sinceros em sua formulação. Assim como a televisão, os quadrinhos, a telenovela, a música rural merecem apreciações sociológicas, entendendo-se como fórmulas de entretenimento de imensa massas, também o teatro-de-revista ou o show musical ao estilo de Sargentelli devem ser vistos desta forma. Ao abrir as portas do Guaíra para espetáculos populares, seu diretor de arte e programação, Marcelo marchioro, concretiza um dos objetivos do governador Ney Braga: fazer com que o povo se aproxime de nossa casa oficial de cultura. Construída ao longo de quase 3 décadas com recursos oficiais, o Guaíra deve ter uma programação diversificada, atingindo desde o mais exigente apreciador de música erudita, que não aceita nada que não seja dito << clássico >>, até aquela faixa que procura um espetáculo para rir e esquecer as agruras do dia-a-dia, cada vez mais cinzento para todos nós. << Rio de cabo a Rabo >> é um teatro-de-revista. Não pretende ser mais do que isto, mas nesta linha, tanto o autor do texto, Olimecha, como o diretor Mendonça - e o grande elenco, com bonitas mulheres e destacando Elke Maravilha, realizam o seu trabalho. Profissionalmente honesto. Ninguém é obrigado a assistir. Mas negar o direito de que tenham sua temporada na cidade, seria uma atitude culturalmente fascista - e contraria a uma política cultural aberta e democrática.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
1
31/07/1980

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