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Aramis

Sincero, real e honesto e suas imagens críticas

Ozualdo Candeias é daquelas personalidades fascinantes que transmitem uma sinceridade absoluta - tão real quanto as imagens de seus filmes. Cabelo e barba embranquecidas, mas um vigor que se faz duvidar de que tenha completado 66 anos no último dia 5 de novembro, é o exemplo do criador autodidata, sem teorizações, sem pretensões, "principalmente sem frescuras" - diz brincando. Paulista de Cajubi, mas infância e adolescência passadas no Interior do Mato Grosso, de uma família humilde, Ozualdo exerceu inúmeras atividades até se decidir, meio por acaso, há duas décadas e meia, pelo cinema. Assim, foi militar na Aeronáutica, teve experiências comerciais e por muitos anos ganhou a vida como fretista, trabalhando primeiro com uma lambreta e depois com um caminhão Dodge. Desta sua vida de homem acostumado aos amplos espaços é que resultou sua visão de um Brasil despojado, sincero - mas naturalmente cruel por verdadeiro - que seus filmes tão bem mostram. Em 1954, pai coruja, pensou em comprar um projetor de filmes em Super 8 para alegrar seus filhos. Ao chegar na Loja Pirani viu uma filmadora 16mm. Preço conveniente, pensou: "em vez de projetar o que os outros filmam, por que não fazer filmes?" Comprou a máquina e, sem qualquer experiência, começou a rodar o que via pela frente. No início, naturalmente, não saia nada de aproveitável mas bastou a leitura de alguns livros macetosos, em espanhol, para aprender a lidar com a maquininha. Depois, do conhecimento com Plínio Sanches (já falecido), criador do cine-jornal "Bandeirante da Tela", Jorge Canotti Belardie (com que iniciou-se no 35mm) e Eliseu Fernandes veio a fase profissional. Era a época dos seminários de cinema do Museu de Arte e cine-jornais. Trabalhando com Flávio Tambelini, Abílio Pereira de Almeida e outros nomes-marco do cinema (e teatro) de São Paulo que adquiriria a prática de fazer um cinema econômico, improvisando soluções, conseguindo acabar um filme com um orçamento que, em termos oficiais não seria nem 10% do que se pretendia. Cineasta econômico - "a inventividade vem daí" - Candeias, com toda razão pode ser crítico com colegas seus que usam (e abusam) de orçamentos inchados para obter vantagens pessoais. Entretanto, caráter maravilhoso, honestíssimo, evita fazer críticas pessoais, preferindo falar de seus projetos ou mostrar o como solucionou problemas de última hora nos longas e curtas que até hoje realizou. *** O crítico Jairo Ferreira, um de seus maiores admiradores, lhe dedicou grande parte do livro "Cinema de Invenção". Seu cinema pobre, sujo (em termos de requinte), com personagens e temas desglamourizados, tem, entretanto, uma sinceridade que o fez ser reconhecido internacionalmente. Cada um de seus sete longas poderia justificar extensos capítulos de um ensaio biográfico. "Opção - As Rosas da Estrada", que teve grande parte das cenas feitas na BR-116, no Paraná, entre o planejamento e sua exibição em Curitiba (única cidade em que teve lançamento comercial, duas semanas no Cine Groff) levou oito anos - e ainda continua inédito. Entretanto, Carlos Augusto Calil, quando presidente da Embrafilme, com sua sensibilidade e cultura, soube reconhecer a potencialidade deste filme sobre caminhoneiros e o inscreveu para o Festival de Locarno, onde obteve o Prêmio Especial do Júri. Candeias já teve várias premiações, mas nem por isto seus filmes deixaram o circuito marginal: "A Margem" é sua obra mais conhecida, mas seus outros longas - "Meu Nome é Tonho", "A Herança" (uma adaptação de "Hamlet" como bang-bang caboclo), "Caçada Sangrenta", "Manelão - Caçador de Orelhas", "A Freira e a Tortura" e "As Belas de Billings" (também lançado comercialmente em Curitiba, mas praticamente inédito no resto do Brasil) são filmes assumidamente de difícil consumo. Homem do povo, o mais simples do cineasta, trabalhando quase sempre com artistas espontâneos (como faziam os cineastas do Neo-Realismo), seus filmes são preconceituosamente acusados de anti-comerciais. Na verdade, Candeias é um cineasta especial, com um reconhecimento tardio - e que desagrada justamente por trazer imagens que incomodam. Profissionalmente capaz de fazer trabalhos esteticamente competentes, fica muito mais à vontade ao voltar sua câmara para o mundo dos deserdados, dos perdedores - como nos antológicos curtas "Zezero" e "Candinho" rodados com filmes vencidos, em precaríssimas condições de produção, mas que pela força das imagens preocuparam os donos do poder ao ponto de passarem anos censurados. Hoje, as poucas cópias que restaram são vistas, respeitosamente, com cult movies de intensa coragem. Tendo como produtor Valêncio Xavier, como ele também um criador de muita voltagem crítica, um de seus maiores amigos. Candeias aqui rodou, há 13 anos, uma adaptação do conto gráfico de Poty, "A Visita do Velho Senhor", interpretado por José Maria dos Santos. O próprio Candeias tem dúvidas para dar datas cronologicamente exatas de sua filmografia. Além de seus trabalhos pessoais, pelo menos mais vinte filmes em que teve atuação - como diretor de produção, fotógrafo, câmara e mesmo ator - já que pelo tipo físico - alto, forte, bigodudo, fez sucesso quando seu amigo Fauzi Mansur o convocou para chefe de gang que ameaçava a belíssima Vera Fisher em "Sinal Vermelho - As Fêmeas", a primeira pornfita [fita pornô] na qual a blumenauense Miss Brasil, hoje estrela global, mostrava toda sua beleza ao natural. Como Carlos Reichenbach - hoje reconhecido internacionalmente, Candeias nunca negou suas origens da Boca do Lixo, espécie de gueto de resistência do cinema paulista, com sua (anti) cultura cinematográfica - mas reflexo da própria condição com que sempre se fez cinema no Brasil - hoje também "morta e só a espera de ser sepultada" como diz Candeias - lamentando o desaparecimento de colegas como Ody Fraga ou a gravíssima situação em que se encontra Oswaldo Oliveira. Excelente fotógrafo, Candeias tem o melhor material sobre a Boca do Lixo, a quem dedicou o documentário "A Festa da Boca", rodado em dezembro de 1976. Para quem pretende conhecer o cinema brasileiro - longe daquele rico e internacionalmente badalado - a visão e entendimento da obra de Candeias, o cineasta e o homem, é indispensável.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
23/02/1989

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