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Aramis

Brooklyn, 40 graus!

"Quero que as pessoas sintam horror ao final do filme. Quero que as pessoas saibam que se nós não falarmos sobre os problemas e os enfrentarmos cara a cara, eles vão piorar muito". (Spike Lee) Se o aparelho de ar condicionado do Lido II não funcionar a contento na sessão em que você assistir a "Faça a Coisa Certa" não se irrite. Sue um pouco que fará bem para você entrar no clima que Spike Lee pretendeu colocar neste seu filme-explosão. A ação se passa durante um dia, parte da noite - e terminará na manhã seguinte no mais inclemente verão nova-iorquino, com temperatura acima dos 40º. Assim como em duas das melhores adaptações que fez de William Faulkner (1897-1962) - "O Mercador de Almas" (The Long Hot Summer, 1958), e "A Fúria do Destino" (The Sound and the Fury, 1959), Martin Ritt conseguiu passar para a tela o clima de calor e sensualidade das estórias ambientadas do calorento old south que o escritor americano tão bem colocava em seus textos. Spike Lee marca também com o calor este seu terceiro longa-metragem, rodado inteiramente num quarteirão numa das mais pobres áreas do Brooklyn. O filme abre e fecha com Mister Senior Love Daddy, D. J. Da WE-Love F.M. (Sam Jackson), uma espécie de mestre (sem) cerimônias do universo focalizado nos 100 minutos do filme - naquela mesma linha que Werewolf, o disc-jockey negro, cego e rebelde de "Corrida Contra o Destino" (Vanishing Pint, 70, de Richard C. Sarafin) conduzia a trama. Não foi sem razão que na última quarta-feira, 14, em Los Angeles, Karl Malden, presidente da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, ao lado de Ceena Davies (Oscar, melhor atriz coadjuvante-89, por "O Turista Acidental") anunciou Spike Lee como candidato ao prêmio de melhor roteiro original - numa disputa em que enfrenta Tom Schulman ("Sociedade de Poetas Mortos"), Steven Sondenberg ("Sexo, Mentiras e Vídeotape") e Nora Ephron ("When Harry Met Sally", já lançado em vídeo). Um roteiro inteligente, capaz de definir os personagens à primeira vista é fundamental para que o filme engrene. Spike Lee conseguiu plenamente isto. Assim, quando Sal (Danny Aiello, indicado ao Oscar de melhor coadjuvante) abre sua pizzaria, ao lado dos filhos Vito (Richard Edson) e Pino (John Turturro), como faz há 20 anos, todo um painel se desdobra - num amanhecer de um dia quente, muito quente. Já na primeira seqüência, ao som do Love Daddy rodando o "Fight The Power" com grupo Public Enemy, enquanto o sonolento Mookie (o próprio Spike) acorda ao lado de sua sensual amante - não uma negra, mas uma tórrida porto-riquenha, Tina (Rosie Perez), que, bamboleando, já havia sido vista durante a apresentação dos créditos. Seqüência a seqüência, outros personagens entram em cena: o simpático Da Mayor (Ossie Davis), um negrão etílico, filosofando e tentando conquistar a Mother Sister (Ruby Dee, veterana atriz e cantora), Buggin'Out (Giancarlo Esposito), consciência negra que tenta levantar o bairro contra a adoração italo-branca de Sal no hall of fame de brancos bem sucedidos nas paredes de sua pizzaria; Radio Raheem (Bill Nunn), outro blacão, bamboleando com seu superstereo portátil - que, no final, é o pivô da explosão do bairro; o casal de coreanos que explora a quitanda do bairro - um elemento (aparentemente) novo no conflito racial, os porto-riquenhos, os policiais - enfim todo um universo emotivo sobre os quais Spike Lee monta a pirâmide social-política desse seu filme-tese. O que é admirável em "Do The Right Thing" é que Spike contornou os perigos de fazer apenas (mais) um filme sobre racismo, nos conflitos brancos e negros. Ao contrário, americano de Atlanta, consciente de sua raça, propôs, entretanto, uma obra aberta ideologicamente, sem maniqueísmos ao estilo black is beautiful ou black power. Tanto é que ao final, duas citações de líderes que lutaram pelos direitos civis - mas utilizando táticas diferentes - o pacifismo do pastor Martin Luther King (1929-1968) e a luta armada pregada por Malcolm X (1925-1965), ambos assassinados, se sobrepõe em reflexões para que o espectador possa tirar suas próprias conclusões. Estruturando com uma certa forma de humor, - mas fazendo "todos os pedacinhos convergir para um só ponto" - "Faça a Coisa Certa" tem o próprio tempo/espaço/clima condicionantes políticas, como o próprio Lee admitiu: "O mais importante é que as pessoas percebam como o calor tem papel decisivo em tudo isso. O calor testa a paciência de todo o mundo e reforça pequenos incidentes: se Radio Raheem tivesse desligado seu rádio, nada teria acontecido. Se Sal tivesse colocado um quadro de um negro na parede da fama de sua pizzaria talvez não tivesse havido a explosão final". Como contou num livro-diáro de bordo de filmagens ("Do the Right Thing: a Spike Lee Join", Simon & Schuster, 197 páginas, US$ 10,95), a produção se estendeu por um ano (dezembro-87/dezembro-88), concentrando-se as filmagens na avenida Stuyvesan, em Bedford-Stuyvesant, Brooklyn (só em abril/89, o filme teve seu lançamento em Cannes, chegando as telas americanas em 30/06/89). Com um orçamento de US$ 6,5 milhões Spike fez um filme que já se pagou várias vezes: mesmo com todo o conteúdo político (e que assustou, de princípio, a Paramount), "Faça a Coisa Certa" chega a uma ampla faixa de publicidade desde que disposta a apreciar uma nova visão da questão racial. Ninguém é muito mau (nem muito bom) e não há superioridades: os brancos (Sal e seus filhos), os negros, o casal coreano, os porto-riquenhos, a polícia etc., cada um na sua, apenas num dia de muito calor e tensão. Em seu primeiro longa, "She's Gotta Have It" (1986, apresentado apenas no III FestRio, mas sem lançamento comercial no Brasil), era sobre os relacionamentos e a vida sexual de uma mulher negra e independente; o musical "School Doze", foi boicotado pela própria produtora (Columbia), de forma que, em termos de realização, "Faça a Coisa Certa" foi na verdade a apresentação internacional de Spike Lee. Inicialmente, ele desejava Robert de Niro para interpretar o papel de Sal mas devido sua recusa fez a escolha certa: Danny Aiello, um excelente ator (mas até agora pouco conhecido no Brasil) criou um personagem tão forte que no próximo dia 26 de março, estará entre os cinco candidatos ao Oscar de melhor coadjuvante (os outros são Dan Aykroyd por "Driving Miss Daisy", Denzel Washington por "Glory", Martin Landau por "Crimes e Contravenções" e Marlon Brando por "Assassinato sob Custódia"). Spike conseguiu interpretações magníficas de atores como Bill Nunn que no papel de Radio Rahenn passa o filme todo ouvindo música, mas não move um músculo. Mais cool, seria impossível. Vito, um dos filhos de Sal, é Richard Edson, que já foi visto em "Estranhos no Paraíso", de Jim Jamursch. Duas revelações femininas: Joice Lee como Jade e Rosie Perez como Tina - e mais a veterana Ruby Dee como Mother Sister dão um timing perfeito. Spike Lee como Mookie, o entregador de pizza, indiferente politicamente no início mas que se concientiza pouco a pouco, é esplêndido: malandro, sapeca e principalmente comunicativo. Muitas laudas podem ser escritas a propósito de "Faça a Coisa Certa", que catipultuado [catapultado] agora com duas indicações ao Oscar (roteiro/ator coadjuvante) merece ter melhor público no Lido II, já que no Condor, na primeira semana foi um fracasso em termos de bilheteria.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
18/02/1990

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