Carlão e sua crônica suburbana de gente humilde de São Paulo
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 07 de maio de 1987
Premiado no ano passado como o melhor diretor por "FIlme Demência" (em exibição a partir desta quinta-feira, 5, no cine Groff), Carlos Reichenbach saiu novamente vitorioso do Festival do Cinema de Gramado: Seu "Anjos do Arrabalde" levou o prêmio de melhor filme, valendo ainda às atrizes Betty Faria e Vanessa Alves os Kikitos de melhor atriz principal e coadjuvante, repectivamente. De quebra, ganhou ainda os prêmios especiais da Embratur e "Manchete" - este significando uma mídia nacional para a promoção do filme, até agora somente exibido por duas semanas em São Paulo.
Emílio Di Biase, ator e diretor bastante conhecido dos curitibanos - aqui dirigiu "O Contestado" de Romario Borelli (1979) e a parte cênica de "O Grande Circo Místico" de Edu Lobo e Chico Buarque (1983), quase que foi também premiado como o melhor coadjuvante. Sua interpretação de uma famoso jornalista - claramente (e admitidamente) inspirado em Mino Carta - arrancou aplausos do público e elogios da crítica. No ano passado, Emílio já havia sido premiado como melhor coadjuvante por "Filme Demência" - dividindo o troféu com Paulo São Thiago (por "Fulaninha" de David Neves).
Há três anos, Reichenbach representava o Brasil no festival de cinema de autor em Roterdam, na Holanda: com "Extremos do Prazer" ganhou comparações a um novo Fassbinder e os elogios aumentaram no ano passado com "Filme Demência". Este ano, "Anjos do Arrabalde" motivou ainda maiores aplausos - naquele festival da Holanda.
Animado pelo sucesso Reichenbach já tem novo projeto: um filme sobre um velho anarquista, inspirado livremente num personagem lendário, Roberto das Neves, que foi ativíssimo líder anarquista e criador da Editora Germinal, em São Paulo. O título de trabalho do filme é "Propriedade Privada" e voltará a trabalhar com Emílio Di Biasi, ao lado de três outros atores - que também são diretores teatrais - Benjamim Kattam, Alceu Nunes e Antonio Abujamra.
Para uma participação especial, está em contatos, na França, com a musa do existencialismo, a atriz Juliette Grecco, 61 anos - que marcou uma fase do cinema francês e fez filmes americanos, quando seu amante, o produtor Darryl F. Zanuck, lançou-a em filmes marcantes como "Raízes do Céu" ( "Roots of Heaven", 57, de John Huston).
Gente humilde
Depois de um difícil mergulho numa visão filosófica do erotismo em "Extremos do Prazer" (1983/84), que há quatro anos, em Gramado, lhe abriu o reconhecimento crítico e um prêmio especial, Reichenbach fez "Filme Demência", que considera o seu trabalho mais pessoal: a crônica de um industrial falido (Enio Gonçalves), ao longo de um mergulho diabólico com seus fantasmas. Agora, neste "Anjos do Arrabalde", Reichenbach, 47 anos, gaúcho, mas desde criança vivendo em São Paulo, realiza uma crônica contemporânea, social e crítica do subúrbio paulista. Com um roteiro muito bem desenvolvido, personagens humanos e que estabelecem uma empatia com o espectador, "Anjos do Arrabalde" é realista no enfoque de professoras de uma escola pública em um bairro periférico de São Paulo, especialmente o esforço de quatro mulheres que tentam extrair sentido e dignidade de suas existências em um meio hostil. Dalia (Betty Faria), Rosa (Clarice Abujamra) e Carmo (Irene Stefania) foram colegas na Escola Normal e lecionam no mesmo grupo escolar - com o nome de "Professor Luís Sérgio Person" (homenagem de Reichenbach ao diretor de São Paulo S/A", já falecido e que lhe deu a primeira chance no cinema) - na periferia. O bairro (não identificado) onde vivem e trabalham é daqueles onde a classe média começa a se instalar, empurrando gradativamente as classes sociais mais baixas para regiões mais distantes - e este aspecto já dá as imagens um sentido documental, num estilo neo-realista. Não é sem razão que Carlão - como Reichenbach é chamado - diz que fez este filme "numa homenagem a Valério Zurlini", referindo-se ao cineasta italiano, diretor, entre outros clássicos de "Crônica Familiar" (do romance de Vasco Patroline).
Carmo (Irene Stefania, atriz retornando após longa ausência, sensível e com uma expressão típica de mestra e esposa) está afastada da profissão há algum tempo por pressão do marido, Henrique (Enio Gonçalves), um ex-policial que se formou em fins-de-semana numa faculdade do ABC, típico advogado-de-porta-de-cadeia. Um casal em lenta ascensão social. Carmo é, das três amigas, aquela que nasceu para lecionar. Venerada pelos ex-alunos e pela diretora, Holanda (Chica Bruza), é a clássica figura da mulher caseira e maternal, aparentemente submissa e acomodada em seu casamento sólido.
Dalia (Betty Faria, ótima em seu personagem) é a mais inteligente de todas, e embora se dedique com paixão a profissão tem consciência das limitações do seu futuro. Sua vida pessoal é complexa. Presa a uma propriedade da qual não pode se desfazer, sustenta um irmão problemático, Afonso (Ricardo Blat), que passa seus dias perambulando pelas redondezas e é preocupação para Dalia. Os dois irmãos são vistos com preconceitos no bairro e Dalia é acusada de lésbica - embora tenha uma relação afetiva-profissional com Carmona (Emílio Di Biasi), jornalista bem-sucedido, cínico mas um estranho no mundo social do bairro. Rosa, a personagem mais profunda (uma interpretação maravilhosa de Clarisse Abujamra, que lembra fisicamente Beth Mendes - hoje secretária da Cultura de São Paulo), é uma mulher solitária e sem paixão. Severa com os alunos tem um caso com Soares (José de Abreu), hipócrita e pretensioso classe média, casado e covarde. Mora num minúsculo apartamento que paga com sacrifício ao BNH. O casal Carmo e Henrique vive tentando aproximá-la do delegado Gaúcho (Carlos Koppa), policial acostumado a violência, mas que é um romântico brega.
Entretanto, a personagem que conduz a história é Aninha (Vanessa Alves, vinda de filmes menores e que em "Demência" já havia tido um certo destaque). Na primeira seqüência ela é violentada por Nivaldo (Kiko Guerra), e que desenvolve uma história paralela, levando a um final violento, em que a repressão explode em sangue, lembrando, psicologicamente, o comportamento de personagens do clássico "Sob o Domínio do Medo" ("Strawdogs", 71 de Sam Peckimpah).
Com estes personagens simples, do quotidiano, Reichenbach construiu uma história sobre o universo feminino, sensível e afetivo - no qual aliás retoma a linha de dois de seus primeiros filmes "Liliam M., Relatório Confidencial" (1978) e "Amor, Palavra Prostituta" (1981). Pelo tom sociológico e humano abordado - o subúrbio, com sua violência, seus preconceitos, suas contradições - Reichenbach não deixa de, à sua maneira, recuperar um pouco daquele neo-paulistanismo social que Roberto Santos abordou, com tanta ternura, em seu primeiro (e até hoje clássico) longa-metragem, "O Grande Momento". Santos, 59 anos, que concorreu também em Gramado com sua adaptação para São Paulo, de "Quincas Borba" (do romance de Machado de Assis) e que morreu domingo, 3, ao voltar a São Paulo, assistindo ao filme de Reichenbach, admite mesmo essa aproximação - embora o comportamento e o próprio lado físico do filme tenha uma grande mudança nestas três décadas que separam os dois filmes.
Admirador de Person - que em "São Paulo S/A" fez um dos melhores senão o melhor filme urbano-social sobre a metrópole paulista - Reichenbach conseguiu dar a "Anjos do Arrabalde" o toque familiare, de cronista do quotidiano - especialmente numa sequência de extremo bom humor (mas com toques de amargura, também), rodada na Praia Grande - e que recebeu o título de "Week End". Nesta sequência, Emílio Di Biasi tem a melhor atuação: alegre, divertido - e depois amargurado - conduz todo um humor hulotiano, como se tivesse recebido o espírito de Jacques Tati em sua melhor forma. A trilha sonora da dupla Manoel Paive e Luiz Chagas (que também fizeram a música de "Quincas Borba") contribui para o clima, que vai do brega ao romântico.
A grande empatia
Exibido até agora apenas por duas semanas em São Paulo, "Anjos do Arrabalde", foi sendo lançado, em Gramado, não só no Festival, mas também em vídeo (Transvídeo, cópias Cz$ 1.400,00 para as locadoras). Sem data ainda de estrear nos circuitos comerciais, é, desde já, um dos filmes mais interessantes deste ano. Uma crônica familiar e paulista, sem glamurização que mesmo tendo a violência urbana como fio de condução não chega nunca a ser extremamente "down". Ao contrário, Reichenbach conseguiu um ponto perfeito de equilíbrio, estabelecendo uma empatia entre seus personagens - e devolvendo ao cinema brasileiro um filme humano, simples e emocionante como não assistia há muitos anos.
Pena que sua exibição comercial em Curitiba não aconteça em seguida, pois em relação a "Filme Demência" - que estréia agora no Groff - mostra um outro lado de Reichenbach, diferente e que (com) prova seu talento, fazendo-o um dos realizadores mais interessantes da nova safra de cineastas brasileiros.
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