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Aramis

Os sambistas de Adelzon e o disco de Paulo Pinheiro

"O que quero dizer mesmo é que o homem nasceu sozinho, embora se junte, se agarre, mas nunca consegue escapar da solidão, são as solidões aglomeradas que se formam e se desfazem, porque na verdade a solidão é o nascimento, a vivência e a morte". (Paulo César Pinheiro) Sem dúvida os Paranaenses podem dizer com orgulho de que este moço do Norte do Estado, após um breve estágio no jornalismo de Curitiba, integrando o departamento de notícias da antiga Guairacá, sob chefia então de Ivens Lagoano Pacheco, corajosamente partiu há 10 anos para a Guanabara. E lá, enfrentando uma cerrada selva se impôs não só como um dos disc-jockeys de maior audiência no horário da madrugada da Rádio Globo, como se firmou como produtor de discos do melhor samba, além de ter, para inveja de muitos, conquistado o amor da bela moça e cantora Dulce Nunes. Pois é, Adelzon hoje é um nome respeitado nos meios artísticos do Rio pelo seu bom trabalho em favor de nossa música popular, procurando novos sambistas e os apresentando em gravações muito bem cuidadas e produzidas. Em outubro de 1971, pela Odeon ele lançava o lp "Quem Samba Fica" (MOFB 3694), com capa dupla e onde apresentava oito inspirados compositores-intérpretes, até então desconhecidos do público: Baianinho, Aniceto do Império, Mário Pereira, Haroldo Melodia, Edalmo da Mocidade Independente, João Nogueira, Roberto Ribeiro e Nadinho da Ilha. Destes, pelo menos dois se destacaram e mereceram lps próprios: João Nogueira - a grande revelação daquele ano e o cantor Roberto Ribeiro, que no ano passado, após lps divididos com Simone e Elza Soares, finalmente mereceu o reconhecimento de nossos críticos: no referendum de O Estado foi escolhido a revelação como cantor. E passados quase 3 anos, Adelzon volta a produzir um álbum para apresentar novos sambistas: "Quem Samba Fica? - Fica" (Odeon, SMOFB 3818, abril/74) é também um disco importante, onde traz cinco novos valores da nossa mais legítima música popular, em sambas de rara beleza e confirmando mais uma vez quanta inspiração e talento está a espera de garimpeiros de nossa MPB, como Adelzon, Hermínio Bello de Carvalho, Paulinho da Viola, Ricardo Cravo Albin e tantos outros produtores de alto nível. Neste lp, Adelzon apresenta os seguintes sambistas: Wilson Moreira, pagodeiro da pesada, nascido em Padre Miguel, hoje na Portela, que aparece aqui "numa roda de sambistas no botequim do Rei, em Padre Miguel, onde continua morando, tomando suas brasas e armando seus pagodes da pesada" como diz Adelzon na legenda da foto de contracapa. Wilson Moreira interpreta seus irônicos sambões "Mel e Mamão com Açúcar" e "Meu Apelo". Sidney da Conceição, "cobra criada no Estácio, morro de São Carlos e Catumbi", pintor espontâneo da escola afro-brasileira, é o autor do quadro utilizado na capa do disco - seguindo assim uma tradição de sambistas-pintores primitivos que tem dois nomes hoje consagrados: Heitor dos Prazeres (1902-1970) e Monsueto (Campos de Menezes, 1924-1973). Sidney comparece com dois dos melhores sambas do disco: "Construção de Barracão" e "Nanaê, Naña Naiana". Flávio Moreira, da ala de compositores da Imperatriz Leopoldinense, igualmente defende duas composições: "O Cansaço da Cabrocha" e "Samba e Madrugada". Casquinha, durante muitos anos "gogó de ouro, puxador de sambas da Portela", na avenida, e autor, juntamente com Candeia e outros bambas, de grandes sambas da Portela, hoje pertence à Velha Guarda, ao lado de dona Vicentina, Alvaiade Ventura, Alberto Lonato e muitos outros. Aqui ele apresenta "O Sonho do Escurinho" e "Outro Recado" (Candeia/Casquinha). Mas a mais grata revelação deste lp é Ivone Lara, "além de uma excelente mãe, dona de casa, enfermeira e assistente social, é grande compositora, toca um cavaquinho pra malandro nenhum botar defeito, pertence a ala das baianas do Império Serrano", como informa Adelzon na contracapa. Já apontada como legítima herdeira de Clementina de Jesus, Ivone Lara - apostamos - em breve ganha seu próprio lp e estará sendo lançado em show de teatro. Pois talento não lhe falta como demonstra nas faixas "Tiê" (em parceria com Hélio Fuleiro) e "Agradeço a Deus" (em parceria com Mano Décio). Com arranjos de Gaya e João Donato, este lp justifica todos os elogios, como o que o rigoroso J. R. Tinhorão lhe dedicou em sua coluna no "Jornal de Brasil" (18/5/74); num mesmo texto em que enalteceu o disco de estréia do compositor Paulo César Pinheiro como cantor (Odeon, 3806, maio/74). Desde que Vinícius de Moraes, começou há 14 anos a mostrar que o compositor pode ir (e deve) interpretar suas músicas, os compositores foram perdendo a timidez, chegando ao ponto de Hermínio Bello de Carvalho, excelente poeta e produtor, além de inspirado letrista, também fazer seu lp ("Sei Lá", Odeon, janeiro/74), onde suas limitações vocais lhe valeram sérias restrições dos críticos. Paulo César Pinheiro - como ocorre com Paulinho Tapajós, que está fazendo seu primeiro lp como cantor na RGE - a situação não é tão grave: ele tem uma voz bem agradável e somando-se a isto a beleza de suas letras - hoje ele é o principal letrista brasileiro. Além do mais para um garoto que criou letras como "Viagem" - talvez a mais bela dos últimos 5 anos na MPB - ou a corajosa "Pesadelo", seria desculpável mesmo que a sua voz não fosse tão linda quanto do Paulinho da Viola. Como registrou a Rádio Jornal do Brasil, em recente especial que lhe dedicou, acontece com Paulo César Pinheiro o que ocorre com a maioria dos letristas de música popular: dificilmente recebe as glórias pelos sucessos e ninguém se lembra de ligar o seu nome a "Matita Perê", "Viagem", "Lapinha", "Não Tenho Ninguém", "Porta-Bandeira" e muitas outras músicas assinadas por nomes ilustres como Tom Jobim, Edu Lobo, Baden Powell e Chico Buarque. Garoto de subúrbio, nascido em Ramos, criado em Jacarepaguá e morador até hoje em São Cristóvão, bairro onde conheceu Baden Powell e onde começou a fazer música, Paulo César Pinheiro guarda na lembrança os tempos de garoto de bola de gude, de pipa, de pião, de brincadeiras que geralmente a zona Sul do Rio de Janeiro não tem. Lembro muito de João Nogueira, parceiro meu numa música que retrata muito essa época de subúrbio: "Nascido no subúrbio dos melhores dias./Com os votos de toda a família/Eh, vida boa, quanto tempo faz". Desde garoto, já queria saber de escrever. Muito dado a paixões, desde cedo freqüentava um ginásio ao lado de um curso pré-normal, aonde iam muitas menininhas. Com 13 anos, conheceu uma dessas meninas e se apaixonou por ela, talvez a mais aguda, embora não a mais profunda de todas as paixões de sua vida. "Ela escrevia versos, crônicas e eu, de tanto ler o que ela fazia, um dia pintou na minha cabeça uma vontade imensa de fazer um pouco daquilo também, de fazer o que estou fazendo até hoje na vida". Foi por essa época que ele conheceu João de Aquino, que morava em São Cristóvão na mesma casa onde Baden Powell havia morado anos antes. "João tocava violão, mas a época era do rock, embora eu nunca fosse muito ligado à música importada. Eu sempre gostei de música brasileira, porque acho a mais rica do mundo. Então, eu botei na cabeça do João, que é primo de Baden, a idéia de fazer música brasileira. Foi então que começou a musicar minhas letras". Um ano depois já estava saindo coisa séria, como "A Viagem" que Paulinho jura que não lhe rendeu quase nada. De direito autoral, recebia até bem pouco tempo, Cr$ 180,00 por mês, até que sua sociedade, a SBACEM, aumentou sua cota para Cr$ 800,00. A transcrição deste depoimento de Paulinho ao JB (publicada na edição de 8/5/74) auxilia entender melhor este garoto de 24 anos, de extraordinária criatividade poética - leitor desde pequeno de Fernando Pessoa, João Cabral de Melo Neto, Drummond, Vinícius e Guimarães Rosa. Ah, tristeza me desculpe Estou de malas prontas Hoje a poesia Veio ao meu encontro Já raiou o dia Vamos viajar. Vamos indo de carona Na garupa leve do vento macio Que vem caminhando Desde muito longe Lá no fim do mar. Apesar de sua pouca idade, Paulinho Pinheiro teve muitos parceiros importantes: Francis Hime, Tom Jobim, Edu Lobo, Dorival Caymi, Vicente Tapajós, mas sobretudo um que foi quem mais o marcou, com quem manteve contato quase diariamente, durante 10 anos, fazendo música também diariamente, Baden Powell. Foi ele quem me jogou nessa máquina toda, me tirou de casa, me levou para a noite de onde nunca mais saí, e quem começou a fazer música para valer. Esta vivência com nomes expressivos da MPB, boa leitura e sobretudo uma grande sensibilidade o fizeram um letrista capaz de produzir pequenas obras-primas para os mais diferentes gêneros. Assim ele fala tão bem de imagens abstratas ("Viagem"), como constrói a história de uma porta-bandeira velha, que depois de reinar sozinha durante anos em sua escola, teve que passar a bandeira para outra mais nova, e na avenida, entre o povo resolve aplaudir a substituta no meio de ovações gerais. Quando toda a avenida sambou O seu mundo desmoronou ela se emocionou Quando alguém perto dela gritou: Viva a porta-bandeira, Sou eu, ela pensou, Mas foi a outra quem se curvou. A influência de Guimarães Rosa é patente na letra de "Matita Perê" que Tom Jobim iniciou em homenagem ao autor de "Grandes Sertões: Veredas", Mário Palmerio e Drummond, e que ele completou. Com música de João de Aquino, ele presta outra homenagem a Guimarães Rosa: "Sagarana", que ocupa 4'18 minutos do lado 1 deste seu disco como cantor. Outra música de grande significado é "Besouro Mangangá", cuja origem explica da seguinte maneira. - "Meu avô era pescador, em Angra dos Reis e passei algum tempo por lá. Minha mãe nasceu numa ilha; meu pai era filho de caboclo, e tudo isso me deu uma noção muito ampla de liberdade. Do meu avô, ouvi muitas lendas, muitas histórias, que me impressionavam muito. De Baden, ouvi a lenda do Besouro Mangangá, muito popular na Bahia, a história de um valente que brigava com navalha, capoeira, e tinha um saveiro. Onde chegava, acabava com a festa, mas tinha suas superstições e uma delas era tomar banho de ervas antes de fazer o amor. Um dia, conheceu uma mulher que o levou para um lugar onde não pode tornar seu banho de ervas, e ele acabou traído, apunhalado pelas costas. Esta lenda serviu de roteiro para a música "O Besouro". A exemplo de outro jovem (e excelente) compositor - Eduardo Gudin, Paulo César Pinheiro procura reforçar seu disco com a participação de um bom coral e arranjos dos maestros Joseph Briamonte, que permitem uma utilização de diversos recursos. Por exemplo, "Viagem" - cuja interpretação estará sempre ligada a figura noturna de Marisa Gata Mansa - é substituída por um recitativo, tão lindo quanto a letra original. "Bandoneon" (onde apresenta um novo parceiro, Guinga), esta na linha tanguista do qual já resultou um outro "clássico", de outro compositor: "Cartinha Pro Leblon" de Taiguara. Paulinho gosta também de falar de amor, embora, com uma precoce nostalgia, confesse: - Eu sempre tive muitas feridas, mas sempre fiz questão de fechar todas. Mas minha alma ficou muito cicatrizada. "Cicatrizes", que compôs em parceria com Miltinho, do MPB (que por sinal a usou como música-título de seu penúltimo LP) está entre uma de suas melhores músicas. Atualmente Paulinho trabalha na tradução das letras da peça "Pippin", sucesso da Broadway no último verão e que Flávio Rangel montará no Teatro Manchete. É importante considerar o disco de Paulo César Pinheiro - como os de Eduardo Gudin, César Costa Filho, Hermínio Bello de Carvalho e tantos outros jovens compositores, como um documento, um depoimento do autor sobre suas músicas. Possivelmente muitos cantores poderiam dar interpretações tecnicamente mais perfeitas, mas o registro na "voz do dono" (das músicas) tem uma autenticidade que justifica a sua edição. Aqui, ele mostra trabalhos com diferentes parceiros - Eduardo Gudin ("Maior é Deus" e "Recado de Poeta"), Baden ("Eu Não Tenho Ninguém", "Falei e Disse", "Lapinha", "Besouro Mangangá"), João de Aquino ("Sagarana", "Viagem"), Miltinho ("Cicatrizes"), Guinga ("Bandoneon") e com Maurício Tapajós, uma das músicas com letras mais fortes ("Pesadelo"): "Quando um muro separa uma ponte une Se a vingança encara O remorso pune Você nem me agarra Alguém vem me solta Você vai na marra Ela um dia volta E se a força é tua Ela um dia é nossa Olha o muro, olha a ponte, olha o dia De ontem, chegando, Que medo você tem de nós, olha aí!
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Nenhum
Música Popular
38
16/06/1974

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