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Elomar, o cantador da caatinga

Elomar Figueira de Mello, 46 anos, marido de Adalmária, pai de João Ernesto, João Omar e Rosa Duprado, vive no Interior da Bahia, compondo suas músicas. Em 1973 gravou um elepê que até hoje não se encontra onde comprar. Foi elogiado por pouquíssimos: continuou ignorado por muitos. Trovador místico, arquiteto criador de bodes, inspirador de Henfil na criação de Francisco Orelhana (o verdadeiro existe e mora lá na Caatinga, às margens do Rio Gavião), e da graúna, Elomar é uma estranha mistura. "Prumodi" compreendê-lo, é preciso viajar 500 e poucos quilômetros, de Salvador até Vitória da Conquista, embrenhar-se com ele numa estradinha de 102 quilômetros, que se percorre de carro, em quatro horas; e, depois andar, mais quilômetro e meio a pé, atravessando na área seca os dois braços do Gavião, vendo os corpos dos cabritinhos mortos ao sol. Tudo isso faz parte do aprendizado. Tudo isso - apenas isso! - explica o homem inquieto, cercado de morte, empenhado em cantar a vida eterna". (Tania Pacheco, setembro/-quase primavera de 1976) Em 1979, quando a atuante Associação Paulista de Críticos de Arte considerou "Na Quadrada das Águas Perdidas" como o melhor disco daquele ano, a surpresa foi grande: afinal, quem era Elomar, o solitário compositor - intérprete das canções rudes, de letras estranhas, exigindo a atenta leitura do texto acompanhando o álbum para conseguir entender as palavras - muitas das quais necessitando de um dicionário para a devida interpretação? A crítica paulista descobria com atraso de seis anos aquilo que alguns poucos brasileiros - entre os quais nos incluímos - já havia percebido em 1973: a força e originalidade do mais importante criador de raízes populares surgido nos anos 70: Elomar Figueira de Mello, baiano de Vitória da Conquista, arquiteto que optou pelo canto da caatinga, pela criação de bodes e por ser apenas um cantador na melhor tradição medieval. ... DAS BARRANCAS DO RIO GAVIÃO - Roberto Sant'Anna, um infatigável Ziegfield tupiniquim, lançador de tantos talentos - do Quinteto Violado em 1971 ao Luís Caldas, atual desbunde baiano com seu "Fricote", foi quem, há 13 anos passados fez com que a música originalíssima de Elomar chegasse ao disco. Convenceu o arisco sertanejo a entrar num estúdio e gravar 12 de suas mais belas canções - de imagens notáveis, enriquecidas por sua sonoridade única. "... Das barrancas do Rio Gavião", título do elepê (Philips/Polygran, reeditado em 1978 - e ainda nas lojas) foi um desbum para quem sabe ver/ouvir o que o Brasil tem de mais belo. Vinicius de Moraes, que na época (1972/73) morava na praia de Itapoã, ao lado da então esposa Jessy Gesse, conheceu Elomar e se apaixonou por sua música - fazendo questão de escrever o texto de contracapa - infelizmente não mantido na reedição do disco. Ali, Vinícius falava da influência dos cantadores ibéricos, dos poetas da época, das Cruzadas, das imagens medievais na obra de Elomar. Hoje, passados 13 anos, Elomar continua tão puro e autêntico como naquela época. Preferiu o esquema independente para seus discos, os vende quase que exclusivamente através de reembolso postal (caixa postal 155, Vitória da Conquista, Bahia) e cada vez escasseiam mais os seus shows. No Sul, a última vez em que esteve foi no final do ano passado, em Porto Alegre. Em Curitiba, onde tem muitos parentes e amigos - não aparece há quase cinco anos. Aqui fez shows individuais por duas vezes, participou de uma das "Parceria Impossíveis" e, ao lado de seus amigor Arthur Moreira Lima (piano); Paulo Moura (clarinete) e Heraldo do Monte (violão) apresentou no Guaíra, o "Consertão" - registrado em LP, pelo seu amigo Mário Aratanha, selo Kuarup - que anteriormente já havia lançado o encontro com Moreira Lima ("Parcelada Malunga", 1980) e, posteriormente, produziu a "Cantoria" com Geraldo Azevedo, Vital Farias e Xangai (LP Kuarup, 1984). Mas o Elomar mais pessoal, marcante, está em álbuns que não se encontram facilmente no comércio - e que devem ser pedidos pelo reembolso postal. Como as "Cartas Catingueiras" e "Auto da Catingueira", produzidos em 1984 e até agora pouquíssimo conhecidos. O CANTOR DA CAATINGA - Vitória da Conquista fica a 600 km de Salvador. E a 100 km de Vitória da Conquista fica o Rio Gavião. Lá na região do Médio Gavião, nos 30 alqueires da Fazenda Duas Passagens, mora Elomar - que só deixa suas criações de bodes, suas vacas, com insistência muito grande "e quando preciso de dinheiro para alguma melhoria na fazenda", nos dizia há alguns anos. Chapéu de abas largas, quase sempre com uma capa escura, ralos fios de barba - pele marcada pelo sol da caatinga - Elomar diz que não se sente bem na cidade. Nem mesmo em Vitória da Conquista. Elomar diz que seu lugar é na caatinga. - "A origem de tudo que aprendi está ligada ao campo. Meu embasamento ético, moral e religioso é de lá. Se eu saio e venho para outra estrutura totalmente diferente, que vai ser de mim? A cidade grande não tem nada para me atrair. Nem profissionalmente". Profissionalmente Elomar é arquiteto, formado pela Universidade Federal da Bahia. Homem culto - leitor de clássicos gregos e latinos, conhecedor profundo do ciclo dos poetas e romances de cavalaria - Elomar recria em suas canções toda uma linguagem medieval mas através de um resgate da linguagem perdida - o que se faz com que o entendimento de seus textos exija um glossário interpretativo. Elomar começou a se interessar pelo violão quando estudava arquitetura em Salvador. Conta que foi até a quarta aula. "Depois passei dez anos estudando sozinho, violão clássico através de partituras" diz explicando, assim o seu estilo de violeiro. - "Essa cultura musical, para mim, foi muito boa, me abriu horizontes. Vi que estava bobeando, gastando a vida em vez de estudar a música da caatinga. Em vez de estudar todos os gêneros de cantoria; parcela, chula, tirana, coco dentado, coco inteiro. Vi que dentro da caatinga estão estratificados restos da cultura e do som medieval". Há 13 anos, quando do lançamento "... Das Barrancas do Rio Gavião", Elomar já se preocupava com a morte de uma cultura da caatinga: - "Essa fruta chamada violeiro está acabando. As feiras cheias de falsos violeiros. Violeiro que anda de avião, se apresenta no rádio, não é violeiro. Mas é a tal da comunicação que faz a gente ouvir tudo que a gente não quer". xxx O AUTO E AS CARTAS - Depois do álbum duplo "Na Quadrada das Águas Perdidas" e dos trabalhos em parcerias - "Consertão" e "Cantoria" - Elomar desenvolveu projetos extremamente pessoais. Com a Orquestra Sinfônica da Bahia escreveu e solou a "Sinfonia Lei para um Rio Seco", gravado há 7 anos - um álbum belíssimo - mostrando a junção do erudito ao popular. Há dois anos, compôs a "Cantiga do Boi Encantado", para a trilha do desenho animado de longa-metragem "Boi Aruá", até hoje inédito nos circuitos comerciais. Esta peça ocupa um dos lados do álbum produzido pela Fundação Cultural da Bahia, que traz a "Sertania - Sinfonia do Sertão", composta e regida por Ernst Widmer, com a Orquestra Sinfônica Federal da Bahia - a mesma com que Elomar havia gravado sua "Sinfonia Leiga para um Rio Seco". Mas seria entre 1983/1984, que Elomar - sempre através de seu selo Rio Gavião - desenvolveria os dois projetos mais audaciosos: os álbuns duplos "Cartas Catingueiras" e "Autos da Catinqueira". Na verdade as "Cartas Catingueiras" foram gravadas em setembro de 1982, no Nosso Estúdio, em São Paulo, com produção de Geraldo Vieira - amigo e apaixonado pela obra de Elomar, assim como Jerusa Pires Ferreira mostra no texto do elucidativo encarte. Aliás, já em 1979, Ernani Maurílio - outros dos apaixonados pela obra de Elomar - preparou também um texto explicativo sobre Elomar no encarte do álbum "Na Quadrada das Águas Perdidas". Já tendo acompanhado Elomar em várias viagens - e com ele passado muitas temporadas nas margens do Rio Gavião - Ernani Maurílio é, possivelmente, o pesquisador mais preparado para escrever o grande ensaio que a obra de Elomar está a merecer - projeto que também fascina outros de seus admiradores, como o jornalista Miguel de Almeida, da "Folha de São Paulo" - que não perde oportunidade de louvar - com toda razão - aquilo que Elomar produz. Capa dura - com um verdadeiro livro de mais de 20 páginas, contendo um texto introdutório de Ernani Maurílio, letras de todas as canções, o indispensável glossário para o entendimento das palavras e cinco páginas de partituras, enriquecido pelas belíssimas ilustrações, arte da capa e contracapa de Juraci Dórea e ilustrações internas de Juarez Paraíso, "Auto da Catingueira" é um dos mais requintados álbuns fonográficos já lançados no Brasil. Sua realização só se tornou possível com o patrocínio do governo da Bahia - através da Secretaria da Fazenda e Fundação Cultural e da Odebrecht Harrison. Com uma tiragem de três mil exemplares, lançado em 1984, este álbum é vendido apenas pelo reembolso postal - a preço que hoje deve estar ao redor de quinhentos cruzados. Mas justifica-se o custo: trata-se de uma real obra-de-arte, trabalho único em termos sonoros e de belíssima apresentação gráfica. Tanto as "Cartas Catingueiras" como "Auto da Catingueira", trazem em seus quatro LPs, na voz agreste, dura - mas extremamente humana de Elomar, ao som de violão - em alguns momentos acompanhados por músicos como Jaques Morelembau (violoncelo), Marcelo Bernardes (flauta) e, especialmente, por dois de seus maiores discípulos - Xangai e Dércio Marques - um retrato sonoro de um Brasil mágico e desconhecido. Uma análise das letras e músicas de Elomar - seus símbolos, valores, imagens, poética, ficção e realidade - merece, obviamente, todo um desenvolvimento crítico para um volume de muitas páginas. Comparações a outras propostas na aproximação dos romances de cavalaria a uma linguagem musical - desenvolvidas em diferentes países, a riqueza do vocabulário de Elomar, a brasilidade de suas expressões - o imaginário (do que as ilustrações de Juarez Paraíso, em "O Auto da Catingueira" tão bem expressam) são temas para que se espere, o mais rapidamente possível, o livro que Ernani Maurílio promete fazer há quase 10 anos. Um estudo que é necessário, haja vista que sem deixar sua fazenda em Vitória da Conquista, mantendo um trabalho independente, Elomar foi, em nosso entendimento, a mais forte personalidade musical de toda a década de 70, influenciando uma geração de compositores e intérpretes - como seu primo Xangai (já com três magníficos LPs gravados), os irmãos Décio e Dorothy Marques (nascidos em Minas, vivendo em vários países e que, inclusive, residiram algum tempo sem São José dos Pinhais), os baianos Roze e Carlos Pitta, entre outros, que, com toda razão, podem ser chamados de "filhos de Elomar". Não é fácil penetrar no mundo de Elomar. Suas músicas jamais tocarão nas FMs do comercialismo, seus shows são raros e seus discos difíceis de serem encontrados. Não há concessão ao marketing. Entretanto, quem conseguir penetrar em seu mundo de cavaleiros, donzelas, lutas e conquistas estará descobrindo um belo e lindo universo - bebendo na fonte o som cristalino, puro, de um dos maiores - e menos famosos - talentos deste Brasil. Elomar vale qualquer sacrifício. Tente conhecê-lo! LEGENDA FOTO 1 - Ilustrações de Juarez Paraíso, do álbum "O Auto da Caatinga".
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
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23/03/1986
elomar é figura singular na nossa musica.gostaria de ter acesso a essas obras originais. comofaço para adquirí-las??
Falar de elomar é simples, para quem conhece a caatinga,que ouvio os seus avos contar historia no terreiro em noites de lua cheia,historia de bicho, historia de rei, historia de incanto, e por air. Mas se torna dificio para quem não procura vier a alma deste poeta singular, no coservadorismo de nossa cultura (caatingueira - sertaneja - nordestina)
Os nossos COMPOSITORES, os que realmente fazem poemas, músicas e os melhores sons, geralmente são esquecidos, ou relegados para outro nível, na prática não ouvimos as melhores melodias. Elomar, Geraldo Azevedo, Vital Farias e tantos outros, principalmente os do nordeste, merecem uma divulgação maior.

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